Madame Bovary de Gustave Flaubert

A Literatura faz-nos bem e faz-nos mal. Milhares de vezes foram-nos vendidos e apregoados que os benefícios são muitos, que a cultura multiplica-se, que o saber expande-se. Como se escrevia na porta de uma loja de livros em França: "A cultura é cara? Experimentem a ignorância!". Contudo, e já que falamos nos irascíveis gauleses, a personagem titular deste mais famoso romance de Flaubert não concordará muito que a nobre Arte, a da Prosa, tenha tido tão boa influência na sua vida. Ou então, teve e ela não o soube aproveitar. 

O problema da Literatura, sabe-o bem Emma Bovary, é que nos faz sonhar realidades inantingíveis de romantismo, tempos perdidos em volúpia desmedida, olhares lânguidos de paixão. Flaubert, que chegou a dizer "Madame Bovary c'est moi!", parecia detestar a corrente literária do Romantismo e este livro, protagonizado por uma das primeiras heroínas de uma outra tendência, a do Realismo, é uma reacção cáustica e acídica aos excessos do primeiro. Emma é uma mulher que devido à condição do género acaba por condescender a um casamento que, ainda que não nascido do Amor, esperança que possa evoluir para os predicados daquele que ela vê descrito nos seus livros. Depressa começa a perceber que não se passa assim e vai, paulatinamente, evoluindo para uma mulher ressentida, amarga, fútil, que entrelaça a vontade em volta de castelos de cartas, banalidades e vaidades. A ponto de procurar a conclusão dos seus quereres em terceiros homens, envolvendo-se em casos extra-matrimoniais que, à época da publicação do romance, arrastaram Flaubert e a sua (anti)heroína pelo novelo da polémica. O enredo desemboca na tragédia, algo tão típico do Realismo, como o nossos Os Maias e o maravilhoso Anna Karénina bem o atestam. 

Emma é, antes de mais, uma mulher presa às leis e costumes da época, enclausurada na sua condição "inferior", e que se vê obrigada a perseguir em outros lugares a felicidade idealizada . Os amantes que encontra, ambos manifestações do Romantismo, um poético, sonhador, emocional, o outro sensual, viril, possante, acabam por sucumbir às realidades do sexo masculino, tal como Flaubert as destila. Resiste o Amor do marido que a idolatra e que tudo faz para que se sinta feliz (a ironia é óbvia), a ponto de, ignorante, a empurrar para os braços dos amantes. Mas Emma  está longe de ser uma vítima. Por um lado, ela claramente não está apaixonada pelo marido. Por outro, ela idealiza o Amor mas não é vista como a abusada, pelo menos do ponto de vista físico e emocional. Sim, um dos amantes a engana e, sim, um dos outros acaba por revelar-se também um beco sem saída, mas ela antes sucumbe aos seus ideais românticos, que tenta colar às relações que possui mas que, inevitavelmente, claudicam à realidade. 

A realidade invade a vida da Madame Bovary de outra forma, a financeira. Todos os excessos se pagam, monetária e emocionalmente. Flaubert critica o modo como se vive no Romantismo. Actos pagos por outrem, um vago outro, uma presença omnipresente de dinheiro (não é assim para todos os romances desta corrente, claro está). Já Tolstoy também o abordava de forma ainda mais irónica e abrangente no Anna Karénina.

Poderia estender a minha análise para lá destas incursões de senso comum mas, sinceramente, não só acho que o leitor deve ler num romance o que achar que deve ler como este post, realisticamente, já está longo demais. Leiam este ou outro livro, mas leiam. É o maior favor que fazemos a nós mesmos. 

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