Desde 2001 que os nomes Tolkien e O
Senhor dos Anéis são conhecidos da maior parte das pessoas graças à
trilogia de filmes de Peter Jackson (há quem goste de os considerar
apenas um único filme. Eu até sou um deles!). Aquele que era um segredo
relativamente bem guardado para os conhecedores do género da Alta Fantasia,
passou a ser apreciado por uma grande maioria, abrindo caminho à legitimação
deste estilo literário para lá de uma franja de leitores ávidos.
O Senhor dos Anéis de Tolkien é
considerado como pioneiro de uma corrente que, desde a sua publicação, gerou
uma infinidade de clones ou de obras originais dentro do mesmo estilo. Hoje em
dia é fácil encontrar uma abundância de mundos fantasiosos espalhados pelas
mais diferentes artes, desde a Prosa, passando pelo Cinema e pela Banda Desenhada.
Estes são mundos povoados por seres fantásticos mais ou menos derivados dos
contos de fada da nossa infância, uma matriz comum que, ao mesmo tempo que nos fornece
uma familiaridade reconfortante, por vezes dá-nos a impressão de estarmos sistematicamente
a ler o mesmo romance. É por isto mesmo que regressamos sempre ao pai do
género, Tolkien, que vale não só pela originalidade mas também, e passo
a expressão, pela genialidade que exibe numa obra sem par na literatura
mundial. Não falo tanto pelo lado mais formal, como por exemplo o facto de ter
inventado várias línguas para diferentes raças da sua Terra Média (o
mundo criado por Tolkien), mas mais pela inspirada imaginação e
sensibilidade que demonstra na construção de uma mitologia funcional e
totalmente nova, ainda que inspirada em arquétipos estabelecidos, nomeadamente
os do folclore anglo-saxónico, escandinavo e irlandês. O autor costumava dizer
que com o mundo de O Senhor do Anéis tentou criar histórias que achava
serem inexistentes na cultura popular anglo-saxónica (Tolkien é inglês).
Apesar de O Senhor dos Anéis ser a
sua mais conhecida obra não é aquela que mais contribuiu para a construção da mitologia
deste mundo alternativo de Tolkien. Esse título cabe ao livro póstumo O
Silmarillion, que compila, em quatro grandes capítulos, a História (sim,
com H maiúsculo) dos primeiros milénios da Terra Média: Ainulindalë;
Valaquenta; Quenta Silmarillion; Akallabêth.
Os dois primeiros contêm a cosmogonia da Terra
Média, contando a história do grande Deus que, num mesmo suspiro e numa
única canção, cria o universo e os seus primeiros filhos, os Valar, o panteão
de deuses primogénito, encarregues do Destino deste mundo virgem. É também aqui
que nos é pela primeira vez relatada a inveja do Anjo Caído dos Valar, Melkor,
o portador do Mal Original e o pai ideológico de todos os demónios que desde
então assolam a Terra Média e os seus habitantes. Dentre estes destacam-se
Sauron (o adversário de O Senhor dos Anéis) e os Balrog (o
demónio de cinzas e fogo que aparece em Irmandade do Anel).
Akallabêth, por sua vez, relata
a trágica história dos homens de vidas longas, os Numenorianos, ancestrais
do personagem Aragorn, protagonizado na trilogia de filmes por Viggo
Mortensen.
Finalmente, o capítulo maior e aquele que
dá nome ao livro passa-se na primeira Era desta Terra Média, e trata
do ensombrado relato das jóias Silmarils (antecessoras dos anéis) e
de todos os infortunados que cruzaram o seu caminho. A temática dos objectos de
poder que corrompem aqueles de quem são posse é um tema transversal em Tolkien.
Ainda que o autor negue qualquer tipo de subtexto metafórico em todas as
suas obras, a força desta narrativa abre espaço à interpretação, mais ainda se
a contextualizarmos na contemporânea 2.ª Grande Guerra.
A título de curiosidade, é em Silmarillion
que conhecemos a origem dos vários povos da Terra Média,
nomeadamente os Homens, Goblins, Elfos e Anões,
além da razão do ódio mútuo entre estes dois últimos.
Este é um livro em tudo diferente do
conhecido Senhor dos Anéis. Enquanto o segundo relata em jeito de
romance cerca de um ano e meio da vida dos seus personagens, Silmarillion
espraia-se por vários milénios e faz lembrar noites frias de Inverno passadas junto
à lareira e acompanhadas por doces contares de histórias. Cada palavra, cada
cadência, motiva a curiosidade infantil na descoberta de uma nova esquina neste
imenso mundo, que se desvenda aos nossos olhos e desabrocha, rico e barroco, na
nossa mente. Todo ele é feito de pura mas vaporosa imaginação, aberto à
construção poética dos seus pormenores, dos interstícios deixados por revelar.
Somos o peregrino que caminha pelas montanhas e planícies desta Terra e Era que
nunca existiram, enquanto soberbas e tenebrosas paisagens se desenham à nossa frente.
Pela sua qualidade e magia, estas são imagens mais reais que a ida para o
trabalho ou as notícias que passam na TV.
A televisão seria exactamente o local ideal
para a adaptação deste gigantesca obra, porque seriam necessárias imensas horas
e muito mais que apenas três filmes para relatar todos os deliciosos e ricos
pormenores de Silmarillion. Claro que estaríamos a falar da mais
ambiciosa e cara produção alguma vez feita, pela riqueza narrativa, certamente,
mas também pelo apanágio pictórico, pelas inúmeras paisagens, por todo o
cenário necessário para fielmente traduzir a imaginação delirante de Tolkien.
Caso não seja possível, Hollywood sempre pode primeiro fazer uma versão
cinematográfica mais manejável para, em seguida, e à semelhança do que em
Portugal se fez para Mistérios de Lisboa e as Linhas de Torres,
passar o que sobra na TV. Ninguém como nós para ensinar Hollywood a
fazer as coisas como deve ser. E já têm um actor disponível. É que James
McAvoy já se posicionou para fazer de um jovem Gandalf.
Felizmente, se quisermos arrepiar caminho,
sempre podemos ir à livraria mais próxima e apanhar uma cópia de O
Silmarillion publicada em Portugal há já algumas décadas pela
Europa-América.
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