Devo confessar duas coisas antes de começar. A
primeira é que considero Daniel Day-Lewis
como um dos melhores atores da sua geração. A segunda é que sou um fã muito
moderado de Steven Spielberg.
Em relação à segunda afirmação esclareço que
gosto dos três primeiros Indiana Jones,
de Guerra dos Mundos, do Relatório Minoritário, do A.I. (ainda que este não seja um filme
100% Spielbergiano), Lista de Schindler
e mais uns poucos. Mas existem outros que não me dizem rigorosamente nada como Munique, Terminal ou Saving Private
Ryan.
Já Daniel
Day Lewis é outra coisa. Não tendo visto todos os seus filmes, as prestações
em O meu pé esquerdo, Haverá Sangue e Idade da Inocência, por exemplo, não são apenas marcos elevados na sua
excelente carreira como também filmes que valem per se.
Lincoln, para mim, não é um grande filme. É cinema que provavelmente dirá mais
a um americano que a um europeu, por razões mais do que óbvias mas que, e
apesar de um tema que deveria ser universal, é tratado de forma muito distante
da nossa realidade e de uma globalidade mais democrática. Como foi dito por
outros, passa ao lado daqueles que Lincoln
procurou libertar, afastando-se
demasiado dos lesados da escravidão e concentrando-se nas idas e vindas das
questões processuais da aprovação da famosa 13ª emenda da Constituição
Americana. Quase como um anti-Django
Libertado, o último do Tarantino.
Novamente vemos retratados os “fetiches” narrativos de Spielberg (e
aqui reconheço ser um pouco tendencioso), nomeadamente o confronto entre uma
figura paternal (neste caso o próprio Lincoln)
e o seu filho, um conflito entre negligência e desejo, o primeiro perdido nos
afazeres pesados de governar os destinos de uma nação e o outro em participar ativamente
na construção da mesma. Esta é uma assinatura típica de Spielberg que a meu ver resultou em filmes como Guerra dos Mundos e A.I. mas não de todo neste, chegando mesmo a ser forçado e
manipulador. Por outro lado, existe um enaltecimento do processo democrático
americano, o que por si só não se constitui como algo necessária e obrigatoriamente
negativo mas que, neste contexto e face à importância do assunto tratado,
pareceu manifestamente desmesurado. De facto, parece que os destinatários da
13ª emenda foram meros espectadores do seu destino o que, face aos dados
históricos, não é de todo a verdade. Existe ainda uma quantidade apreciável de
discursos redentores e grandiloquentes, o que num contexto teatral poderia ter
resultado mas que aqui e a meu ver caem ao chão pela gravidade das próprias
palavras.
Contudo, existem duas características deste
filme que o redimem.
A primeira é o excelente naipe de atores e muito
especialmente o inqualificável protagonista que, uma vez mais, esquece-se de si
mesmo e veste-se do personagem de forma completa e simbiótica. Mas mesmo na
presença desta figura imponente que é Day-Lewis
ainda persistem James Spader, num
papel que muito dever-se-á a prestação inesquecível na série de TV Boston Legal, e Tommy Lee Jones, que encarna um dos mais conflituados e
conflituosos personagens em todo o filme. É ele a âncora humana de todo o
enredo.
Finalmente, não se pode deixar de sublinhar a
impecável fotografia e cinematografia que esteve ao cargo do excelente Janusz Kaminski, polaco que acompanha
Spielberg desde A Lista de Schindler
e que neste Lincoln opta pelo cheiro
a mofo, pelo ar repleto de pó e pela iluminação baça e cinzenta devedora a
artistas plásticos como Eastman Johnson,
fundador do Museu Metropolitano de Arte de Nova Iorque.
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