Quem dissesse que os Flintstones e um leão-de-montanha cor de rosa seriam duas das melhores BDs lidas este ano teria uma resposta: vai te f***r. Mas os rumores e as sugestões começaram, paulatinamente, a aparecer aqui e acolá, e a curiosidade por produtos pop reinventados através de um prisma adulto foi mais forte. Lá teve de se ler e (vejam bem) quem descrevia estas duas obras como "algo do melhor que já leram em 2018", ou outros hiperbolismos, não estava a exagerar. Tudo por causa do enorme talento do escritor Mark Russel e da coragem da DC Comics em reinventar produtos que pertencem ao catálogo da Hanna Barbera (HB), ambas detidas pela Warner Bros. Aliás, para os mais distraídos, a editora DC tem publicado histórias a solo de muitas das personagens da HB, bem como usado e abusado de crossovers com supers como Super-Homem, Mulher-Maravilha, Batman, Joker, Lex Luthor, etc.
Quando foram anunciadas estas novas revistas, este vosso que escreve achou que não passavam de novas aventuras ao estilo dos desenhos animados da nosso infância. Achei mal, porque antes eram interpretações adultas, onde as personagens habitam um mundo bem mais real, com reflexões maduras e avisadas. The Flintstones extrapola a análise de família nuclear, e foca-se nos problemas realistas do impacto de tecnologia, sindicância, entre outros aspectos adultos da existência humana. Russel não refreia um olhar cheio de humor cínico, de análise clarividente mas irónica, escolhendo a forma da palavra com mestria e acutilância. Estes não são o Fred e a Wilma da nossa infância, mas antes versões pós-modernistas que servem de alegoria ao mundo moderno (e à natureza humana). Não se afasta totalmente da genética pop (isto não é o Arkham Asylum, nem os Watchmen no distanciamento assumido que fizeram aos supers), nem se transforma numa análise com recurso à violência, ao surrealismo, etc - ferramentas que muitos confundem com maturidade. Antes faz uma mistura saudável, para criar uma narrativa sem papas na língua, que não se poupa na complexidade temática.
Exit Stage Left: The Snaglepuss Chronicles, mais recente, é outro bicho (literalmente). Russel viaja para a era do McCartismo da década de 50 dos EUA, para analisar o impacto nas Artes deste movimento, usando para tal animais antropomorfizados. O protagonista é gay, actor de teatro e dado a reflexões profundas. Existe a presença constante de um perigo muito real, o da perseguição decorada pela voz da verdade religiosa, política e moral. Esse perigo é maior e mais sentido quando somos confortados com ele através dos olhos de alguns dos nossos heróis de infância. Um olhar pós-modernista que deve muito a autores como Alan Moore e Grant Morrison, mas que Mark Russel assume de forma identitária e sua.
Duas obras essenciais, que se socorrem de roupagens que lembram a nossa juventude, mas que falam de assuntos muito sérios de forma inteligente e robusta. Se Russel já não estava no vosso radar, deveria estar, porque este senhor, no que a mim diz respeito, é, a par de Tom King, um dos novos melhores talentos da actualidade na BD (em breve terá duas novas séries, uma da DC, Wonder Twins, e outra da Dynamite, da Red Sonja).
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