Tenho um desafio para quem quiser ver este filme: sair da sala sem sentir uma enorme carga de emoção que pode (ou não) acabar em lágrima (claro que não se forem homens de barba bem rija). I, Daniel Blake venceu a prestigiada Palma D'Ouro de Cannes deste ano de 2016 o que não aconteceu por acaso. Sim, é um filme profundamente político mas, neste caso, a política é aquela que interessa, a ligada ao Homem, ao Humano. Claro que podemos vê-lo da sua perspectiva demagógica, aquela que, através da história do homem que empresta o nome ao título, procura denunciar um sistema de segurança social moralmente falido (já é a segunda vez, em dois posts, que uso este termo) e cuja função essencial, a de proteger os mais fracos, não é de forma alguma atingida. Mas, como pessoas, somos obrigados a ver a tragédia de Daniel Blake e de todos à sua volta de uma perspectiva diferente, de uma escala mais, desculpem o termo, mundana. Esta é a história de uma pessoa (ou mais que uma, se queremos ser exactos) a quem um sistema de ajuda do estado, considerado de forma consistente como uma das grandes vitórias do pós-segunda guerra, não funciona. Não funciona porque, na incessante procura de uma professa eficiência e justiça, falha no seu único objectivo máximo, ao confundir as árvores com a floresta. Um único número de segurança social não significa nada face ao somatório desse com todos os outros. Aqui reside a trágica ironia: não somos indivíduos mas antes números de uma estatística de médias.
Um homem, já na terceira idade, tem um ataque cardíaco e enceta uma dolorosa demanda por ajuda do estado, o mesmo que, à revelia de profissionais de saúde efectivos, nega-lhe uma pensão enquanto recupera para poder voltar a uma vida produtiva (a recusa é feita através do que aparenta ser uma empresa privada subcontratada). A busca de Daniel Blake é similar à tortura de Sísifo, aquele que no Tártaro é obrigado, durante a eternidade, a empurrar uma pedra montanha acima. Esta minha analogia não procura credenciar o filme com qualquer tipo de pedigree clássico ou de reverência a elevada literatura. Se há algo em que Ken Loach se excede é no carácter documental com que se aproxima dos protagonistas e dos eventos retratados. Esta não é uma história Skakespeareana vislumbrada por Deuses. Se existem Deuses, esses são bem terrenos e são Homens, detentores de poder discricionário sobre a vida de pares que repudiam como estatísticas da sua própria competência ou incompetência. Este é um atestado à inutilidade de um sistema onde seres humanos não conseguem ver outros em profunda dor e abandono. É particularmente difícil ver este filme sem uma carga gigante de lugares comuns porque é impossível não nos vermos ali, espelhados, muitos de nós, distantes daquele destino por apenas um ordenado.
Junto com Hell and High Water (que vi imediatamente antes deste em sala de cinema), I, Daniel Blake forma uma carta desesperada a um sistema que não serve quem vota nele e para quem ele deve trabalhar. É um apelo e um grito. Não é um filme político mas não consegue deixar de o ser porque, tal como é referido no Batman v Superman e perdoem o exagero, "todos os actos neste mundo são políticos". Ken Loach sabe disso e dessa sapiência constrói uma poderosa ficção em forma de documentário. Outro filme que me fez rever os meus melhores do ano.
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