Primeiro: não é Super-Mulher. É Mulher-Maravilha. Um nome é tão bom ou tão mau quanto o outro mas o original é Wonder Woman e, se o dicionário não engana, Wonder traduz-se como Maravilha e não Super. Mas como é que uma tradução preguiçosa e preconceituosa ficou por tanto tempo? (inclusive aparece na contra-capa da edição portuguesa do Blu-ray de Batman v Superman - até tremo pelo título do filme em 2017).
Segundo: Ainda estão interessados? Eu sei. A Mulher-Maravilha não é o mais estimulante dos personagens num universo literário geralmente direccionado para homens. Não é testosterona aos saltos enquanto esmurra indiscriminadamente o vilão du jour (às vezes também o faz). É uma mulher, poderosa em mais sentidos do que um, algo mal visto numa arte que "esforça-se" por enquadrar o género num de dois prismas: femme fatale ou interesse romântico (este, muitas vezes, indefeso). Tenho perfeita consciência que não é bem assim e não o é há já muito tempo, mas ainda existem alguns exemplos sonantes.
O nome é Diana de Themyscira, princesa nascida numa ilha inteiramente povoada por mulheres, as Amazonas da mitologia grega – ironicamente, a ilha tem o epíteto de Ilha Paraíso. Exiladas pelo deuses do panteão grego, depois de serem ludibriadas por servos do deus da guerra, Ares, a cometer crimes atrozes, viveram durante milénios sob a égide da paz e de uma missão, a de proteger o mundo de um mal inominável sepultado no submundo da ilha de Themyscira. Ares, com o decorrer dos milénios e o crescente domínio da guerra, desenvolve-se em poder e influência, obrigando à escolha de uma mensageira da paz a ser enviada ao mundo patriarcal (o nome dado pelas Amazonas ao nosso). Das suas fileiras, e à revelia de uma mãe protectora, emerge Diana, a primeira e única criança a nascer na ilha de Themyscira, concebida imaculadamente através do barro moldado pela mãe nas praias da sua terra e soprado à vida com as dádivas dos deuses - um nascimento ao estilo de salvador-religioso. Diana vence um conjunto de provas e viaja para o nosso mundo, onde enfrenta os desígnios de Ares e, através mais da verdade e menos dos punhos, consegue prevalecer ao deus insano.
Vencida a prova, é escolhida pelos deuses e pelas Amazonas como embaixadora, não apenas da sua terra natal mas acima de tudo da paz, mensagem esta que prevalece sobre todas as demais tradições themyscirianas e que evoca os textos e filosofias da cultura grega, da qual a sua é uma evolução (e não somos todos nós, ocidentais, gregos?). Diana não é tanto uma super-heroína nos moldes mais tradicionais, mas antes uma mensageira de fraternidade, democracia e igualdade, alguém que escolhe a palavra e o diálogo ao invés do punho e da violência. E ainda se perguntam porque tem tão pouca fama no universo dos super-heróis.
Os leitores experimentados de BD reconhecem, nos dois parágrafos anteriores, não a Mulher-Maravilha mas antes uma das suas versões, a concebida por George Pérez, o desenhista/escritor a quem foi dada a missão de reintroduzir o personagem nos idos de 1986. Esta é a versão pela qual conheci Diana e aquela que reconheço como a interpretação mais interessante do mito. Acontece que o personagem é já bastante mais antigo, tendo sido criada por William Moulton Marston em 1941 para a editora DC Comics. Marston é também conhecido por ser o criador do polígrafo e praticante de filosofias matrimoniais bastante liberais, mesmo para os dias de hoje.
O paralelismo entre a vida do autor e o personagem que criou é absolutamente delicioso. Passo a explicar e começo pelo segundo facto. Marston era “casado” com duas mulheres, com quem alegadamente praticava bondage. Muitas das primeiras histórias da Mulher-Maravilha continham várias cenas em que ela era sensualmente amarrada. Tal era a frequência que, às paginas tantas, o editor pediu para as minimizar. O primeiro facto, o de ter sido criador do polígrafo, é também bastante interessante. Muitos sabem que a única arma que Diana manuseia é um laço forjado por Hefaestus, um dos deuses do panteão grego, e esse mesmo laço tem uma característica muito particular: todos os a si amarrados são impelidos a dizer apenas a verdade (outra vez uma alusão ao bondage). Autores mais tardios racionalizaram que não era o laço que impelia as pessoas a dizer a verdade mas antes a própria Diana, que usava o instrumento apenas como um canal da sua influência. Inclusive, noutra evolução do personagem, John Byrne chegou a matar Diana e a ressuscitá-la como a Deusa da Verdade (ah, os fabulosos anos 90, onde todos os super-heróis morriam ou eram mortalmente aleijados).
Mas voltemos a Pérez! Nas mãos deste autor e durante cerca de 5 anos, Diana foi mais do que a Deusa da Verdade, não tanto beligerante mas antes pregadora, a voz de uma mulher belíssima mas inocente aos modos dos homens. Ainda que aparentasse ser o cordeiro abandonado aos lobos, este era um cordeiro com poderes doados pelos deuses e talentos forjados por uma personalidade pura e desinteressada, conseguindo preservar a sua missão, mesmo que exposta às contrariedades humanas. A princesa Diana de Themyscira era realeza com o intuito de nos ensinar os valores da cultura grega e da paz. Dificilmente, neste mundo em que vivemos, a sua natureza, pureza e missão poderiam ser bem recebidos e interpretados. Dificilmente, num mundo de cínicos e numa arte principalmente lida e criada por e para homens, uma mulher detentora da força do diálogo seria recebida sem preconceitos. E, à semelhança do Super-Homem, acaba por não ser dos personagens de BD mais bem aceites.
Numa interpretação mais recente, do escritor Brian Azzarello e desenhista Cliff Chang, Diana é uma semideusa, filha de Zeus. Esta evolução foi bastante contestada por alguns leitores de BD mas, se virmos bem, estamos a falar de um dos mais conhecidos aspectos da mitologia grega. As indiscrições de Zeus para com Hera, a sua mulher, são bastante conhecidas, tendo originado outros semideuses como Héracles, Helena de Tróia ou Perseu, ou tendo envolvido casos bastante conhecidos, como o de Europa. Acho que esta é uma companhia que merece Diana.
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