Muitas vezes procuramos nas obras de arte que lemos, vemos ou ouvimos apenas a referência directa ao tema que elas focam. A Ilíada é sobre a Guerra de Tróia. Madame Bovary é sobre adultério. Os Sopranos é sobre mafiosos. Mas obras imortais como estas sabem que, para perdurar no tempo, têm de ser capazes de sair dos limites do enredo. Se bem arquitectadas, se as suas histórias são bem contadas, elas transcenderão os limites impostos pelas acções dos personagens e pela geografia dos rios, planícies e montanhas. Olhos diferentes verão diferentes mensagens. Prismas tecidos na malha das palavras permitirão ver, de forma única, um outro tema contado naquela guerra, naquela romance, naquele crime. É por isso que temas herméticos, eventos que interessarão apenas a alguns, podem crescer e chegar aquele lugar estranho e indefinível do reconhecimento universal.
O Inverno do Desenhador, do autor espanhol Paco Roca, relata um desses temas herméticos que, neste caso, é apenas do conhecimento (interesse?) intimo de apreciadores do mundo editorial da BD do país vizinho. Cinco dos mais populares autores da 9.ª Arte na década de 50 em Espanha decidem abandonar a editora para a qual trabalhavam e formam a sua própria. Assim poderiam reter os direitos de publicação dos personagens e ter liberdade criativa para formar as histórias que bem entendiam. O tema é, sem duvida, microscópico mas o alcance está longe de o ser. O contexto é o da ditadura franquista e o da mão pesada de uma editora quase monopolista que tenta, por todos os meios, permanecer com os direitos de publicação do trabalho de autores assalariados. Faz lembrar batalhas familiares (também herméticas) da editora Image dos EUA (três décadas depois) e faz lembrar a perpétua procura de equilíbrio entre a voz única, da coragem de ter o seu caminho e da luta contra qualquer hegemonia.
Paco Roca é um autor que descobri recentemente e de quem li, até o momento, apenas esta obra e Rugas. Enquanto o tema do anterior era transversal, porque focava uma doença que afecta a vida de muitos, o Alzheimer, O Inverno do Desenhador afasta-se desta transversalidade, como já sublinhei. Mas a arte de Roca, a sua capacidade de contar uma história em Banda Desenhada, supera essa limitação e permitem uma absorção mais ampla. Um estilo "simples" e quase cartoonesco, evocador de clareza do desenho, um "partir de páginas" cinematográfico, exemplificado por mais que uma cena de câmara "parada" com o autor como observador dos acontecimentos, tudo conspira para a criação de um livro interessante e robusto. Uma digna adição à brilhante colecção Novelas Gráficas da Levoir.
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