Os festivais de cinema que agora parecem proliferar por Lisboa são uma boa oportunidade para ver filmes que dificilmente estreiam nas salas, para arriscar e para ter a sorte de ver cinematografia de diferentes geografias, temáticas e estéticas. Foi o caso deste Sábado último, onde tive a sorte de ver três que provinham de locais bem diferentes, com temas diversificados (ainda que a tocar o terror e o fantástico, como não poderia deixar de ser) e com uma estética bem vincada e única.
The Transfiguration de Michael O'Shea não é bem um filme de terror ou de fantástico. O próprio protagonista insiste em dizer que muitas das histórias de vampiros que existem "não são nada realistas". Um jovem afro-americano perdeu a mãe. Vive com o irmão num bairro social da periferia nova-iorquina e, essencialmente, não é falador e afasta-se de colegas e vizinhos. Conhece uma rapariga branca, envolvem-se e conhece o carinho vindo de uma relação não totalmente desprovida de egoísmo mas menos do que aquele a que está habituado. O lado "terror" vem de que o jovem protagonista é um assassino em série de motif vampiro. Ele anseia ser vampiro e acredita que, por um lento processo de "transfiguração", poderá transformar-se em um. O enredo é parco em palavras e acção, preferindo concentrar-se na sugestão e no calmo progredir da história até a apoteose. Não sendo uma obra-prima é também um bom exemplo de uma primeira obra que poderá antever uma carreira sólida. É esperar.
O melhor do Sábado veio do Irão com Under the Shadow de Babak Anvari. No Teerão de 1988, uma mãe tenta proteger a sua filha não só dos terrores da guerra Irão-Iraque, como de uma infestação de Djinn, demônios da mitologia árabe, que invadem o seu prédio. Quando, na primeira e segunda parte deste filme, a infestação do sobrenatural ainda não é clara, a história lembrou-me de A Dança das Andorinhas, BD de Zeina Abirached. O mesmo dilema, a mesma necessidade de proteção dos mísseis da guerra, o mesmo companheirismo entre vizinhos de prédios. Contudo, o realizador não só escolhe introduzir o factor do fantástico e do terror, como procura elaborar uma cuidada e discreta metáfora sobre o conflito (que viveu enquanto criança), sobre a mudança ideológica e religiosa tida no seu país e sobre as suas consequências, principalmente para o sexo feminino. Mesmo a escolha da manifestação dos Djinn inclina-se para este lado mais sério da exploração do sobrenatural enquanto comentário social. Mas Babak Anvari não o faz, como disse, de forma folclórica e óbvia. Atmosférico, poderoso, este é outro dos grandes filmes deste MOTELx de 2016.
O dia acabou com Baskin do turco Can Evrenol que, segundo foi anunciado pelo próprio, vem já com algum hype. Extremamente gore, este OVNI, este objecto onírico de difícil apreensão, oscila entre laivos tarantinescos (num diálogo entre polícias no início do filme), sangue e tripas dignas dos melhores (o realizador de Cannibal Holocaust estava na audiência, maravilhado) e surrealismo satânico hiperbólico - nem eu sei bem o que quero dizer com isto. É a história não só dos polícias como um todo mas também de um em particular e de um estranho trauma de infância - chega a ser sugerido que tudo pode não passar de um sonho desse mesmo. Violento, sangrento, é o tipo de filme que imaginamos ser o estilo da larga maioria de um festival que orgulha-se de ser de terror. Um objecto estranho que talvez precise de tempo para se entranhar (no que a mim diz respeito).
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