Conheci Antonio Altarriba, escritor de BD, no ano passado. E em dois sentidos. Primeiro, li o Arte de Voar, belíssima obra sobre o pai do autor, onde este último recorda a sua conturbada vida enquanto cai para a morte num suicídio. Todas as palavras que possam escrever-se ou dizer-se sobre este livro ficam longe de lhe fazer justiça. Apenas a sua leitura é suficiente. Segundo, conheci-o pessoalmente, numa breve conversa, enquanto assinava a minha cópia do mesmo livro. Era um homem com entusiasmo e força, cada momento parecia uma dádiva. Nunca fui melancólico e inclinado a surtos de nostalgia reflectiva e, portanto, a personalidade de Altarriba cativou-me imediatamente. Apesar da pesada história que foi a vivência do seu pai o escritor aparentava alegria (nos 10 a 20 minutos em que partilhei o mesmo espaço com ele). Não sei porque escrevo estas palavras escusadas mas pareceu-me ser uma introdução aceitável para este segundo livro que li do autor: Eu, Assassino, publicado em Portugal pela novata editora Arte de Autor.
O tema deste livro é (como poderiam depreender do título) particularmente diferente do Arte de Voar. Um professor universitário de arte do País Basco cultiva, paralelamente, o prazer do assassinato. Prazer é a palavra correcta, porque fá-lo para preencher o vazio de uma certa terrível beleza. Escolhe as suas vítimas quase ao acaso e prepara o ritual de forma minuciosa, na procura de um acto anónimo de felicidade da produção artística. Num assomo de pedantismo intelectual, refugia-se neste acto hediondo para atingir uma espécie de êxtase que classifica de exclusivamente artístico mas que (claro) nada mais é que psicopata. Mas estes actos ocorrem no meio de uma vida professoral e académica de luta entre visões de ensino, da independência do País Basco, de desamores (da esposa e não só), de aventuras sexuais com alunas, etc. Em suma, numa vida universitária romantizada.
Apesar das temáticas serem bastante diferentes, de uma uma ser real e outra fantasiada, pergunto-me se nesta não existirá também algo de profundamente autobiográfico, não só porque Altarriba trabalha (ou trabalhou) no meio universitário do País Basco mas também porque o protagonista faz lembrar a face do autor. Não quero dizer (longe de mim) que o escritor é um assassino em série mas as venenosas querelas entre professores parecem familiares , o assassinato sistemático uma espécie de sonho e escape.
A completar o livro temos o excelente trabalho de Keko, que consegue de forma clara e através do chiaroscuro fornecer a ambiência perfeita, escolhendo borrões e pitadas de vermelho para intensificar momentos chave da narrativa (uns óbvios, outros nem por isso). Também ele é um exímio contador de histórias, conseguindo partir a narrativa de Altarriba nos passos necessários para a tornar cativante. Com ele existem espaços para o silêncio, para as poucas palavras e para as exposições longas. Tudo em equilíbrio.
Um livro que é um prazer. O final talvez deixe um pouco a desejar, tendo em consideração o oponente edifício que construiu-se até aí, mas não o suficiente para o afastar de ser uma leitura única.
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