É muito difícil descrever o impacto de Sandman na minha vida como leitor. Provavelmente foi com ele que comecei uma abordagem diferente à BD. Foi com o épico de Neil Gaiman, na década de 90, que tive um mais profundo contacto com o arrebatamento não só vindo do espanto mas também do intelecto. Devo estar a exagerar, certamente, mas, quando tive a oportunidade de ler os Trade Paperbacks que iam coleccionando os vários volumes da saga, cada momento de pausa (seria mesmo uma pausa ou um play verdadeiro?) era de puro e inviolado prazer. As palavras de Gaiman eram mantras. Os diálogos filosofias para a vida. Até hoje, Brief Lives continua a ser um dos meus livros de referência, aquele que teima em ser um dos meus preferidos de sempre (a minha cópia assinada por Neil Gaiman e com um desenho de Jill Thompson é um dos meus orgulhos de biblioteca). Contudo, ao contrário do que possa parecer, o regresso do criador à sua mais emblemática obra de BD não era algo que quisesse e o anuncio deste volume, Overture, não me chegou como algo ansiosamente esperado. Sempre senti que a obra estava encerrada. Pouco mais haveria a acrescentar.
O que vou dizer a seguir soará a sacrilégio. A estrela deste Overture é J. H. Williams III. O desenhador é um virtuoso do lápis, pincel, o que quer que queiram chamar. Este senhor consegue transformar a mais banal das cenas (e este Sandman não as tem) num concerto, numa ópera, num carnaval, num épico jogo de futebol. Williams estica e dobra a arte de fazer BD para lá dos limites do convencional. Melhor: ele já deixou o convencional há 10 anos atrás e agora, pura e simplesmente, não consegue regressar. Desde Promethea com Alan Moore que surpreende de projeto em projeto, inovando não só no desenho como também na construção da página de BD, no modo como quebra o argumento dos vários autores com que vai trabalhando. Sem dúvida um dos maiores talentos da 9.ª Arte dos EUA (nesta linha, Yannick Paquette começa a revelar-se um talento a acompanhar - esperem pelo seu Wonder Woman: Earth One). O trabalho de Williams neste Overture é de tirar o fôlego, tantos são os pormenores e as idiossincrasias dos desenhos, que bailam sem esforço pelos múltiplos e diversos cenários que Neil Gaiman constrói para o elenco. No final, apenas apetece aplaudir de pé.
E quanto a Gaiman? Como se porta? Como Gaiman. Ponto final. Não existe aqui nada de novo nesse sentido. A escrita continua igualmente onírica, poética e surreal. Não cedeu um centímetro de controlo sobre as vozes do enorme e operático elenco que criou em Sandman. Consegue ir buscar pormenores memoráveis da obra original e entretecê-las no enredo, não só enriquecendo esta obra como a que nos surpreendeu anos atrás. Consegue também enriquecer a mitologia ao nos apresentar (desculpem este spoiler) os progenitores dos Endless. Esse é dos grandes momentos de Overture, onde a escrita de Gaiman sobressai e os desenhos de Williams explodem. O escritor quis regressar a casa e, apesar de ser uma das melhores obras que saíram este ano, para mim o impacto da run original é tão gigante que este capitulo quase, quase, quase que sabe a redundante (mas não é).
Sem dúvida, um dos livros de BD do ano.
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