O que vou lendo! - Médée vol. 1 e 2 de Nancy Peña e Blandine Le Callet (e uma perninha de Medeia de Eurípedes)

           

"Je crois qu'il existe, quelque part, une puissance, qui se joue de nous, qui se moque et ricane. On a coutume d'appeler cela l'ironie du sort, ou l'ironie des dieux, lorsque ont croit en eux." - Médée, volume dois - Le Couteau dans la Plaie, palavras de Medeia pela escritora Blandine Le Callet.

Medeia é um dos clássicos personagens da tragédia grega. A peça de teatro de Eurípedes existe há cerca de 2400 anos e é também uma das mais escalpelizadas e estudadas da antiguidade clássica. O personagem e a obra já foram associados a diversas escolas de interpretação, passando pelo feminismo, pela vingança, etc. Trata-se de uma das mais interessantes figuras da mitologia grega, com todas as conotações que a isso associamos. A peça remete-se a um período fulcral da vida de Medeia, quando, traída por Jasão, pai de seus dois filhos e a razão porque abandonou a Terra Natal, a Cólquida, decide tornar material o ardor de vingança que nutre pelo líder dos Argonautas. Essa fúria, criada pelo desprezo machista de Jasão que decidiu casar-se com uma outra mulher, irá levar a que Medeia mate a mulher do seu agressor e cometa um dos mais ignóbeis actos da literatura ocidental, o filicídio. 

Ora, apesar deste acto transportar Medeia para o papel de vilã da sua própria história, o personagem acaba por estar enquadrado num conjunto de considerações importantes que a elevam para lá deste enquadramento. Dentre várias, quero destacar a sua associação a dois aspectos mitológicos e sobrenaturais: ser discípula de Hécate, uma divindade da Lua, ligada à feitiçaria e, curiosamente, às mulheres; ser neta do deus grego do Sol, Helios. Tanto um como outro são aludidos na peça de Eurípedes. O primeiro, quando Medeia procura inspiração e arte para o seu acto cruel. O segundo, na parte final da peça, já depois do assassinato, quando, com os dois filhos mortos nos braços, ergue-se sobre Jasão montada na carruagem de seu avô, o que transporta a peça e o acto hediondo para o palco da vingança primal, uma variação do Deus Ex-Machina.

Numa cultura ocidental  fortemente misógina, Medeia sempre foi vista, junto com a deusa Hécate, como a personificação do medo masculino pela força e natureza femininas. Esta Banda Desenhada, escrita e desenhada por duas mulheres, procura recuperar a honra de um personagem tão vilificado pela literatura e pela interpretação. Os dois primeiros volumes desta saga abordam dois períodos diferentes da vida do personagem. O primeiro, L'Ombre D'Hécate, centra-se na infância da mulher, enquanto que o segundo, Le Couteau dans la Plaie, foca o malfadado primeiro encontro entre Medeia e Jasão. O facto de Blandine Le Callet ser uma investigadora de Literatura Helénica empresta a esta obra uma solidez e um peso que, de outra forma, poderiam lhe escapar. Mas o passado da autora também como escritora de prosa preparou-a para a arte do dramático e este Médée é uma obra de BD em pleno direito. A outra parte da parelha de criadores, Nancy Peña, já era conhecida por outros trabalhos, mas consegue neste uma abordagem tão depressa sua como perfeitamente moldada ao peso e temática da vida deste interessantíssimo personagem. Peña associa um estilo mais "leve", menos realista, à evocação de uma estética grega, principalmente aquela advinda dos conhecidos vasos que sobreviveram da época. 

As duas autoras conseguem construir um todo interessantíssimo que, por um lado, procura fazer uma releitura do mito, e, por outro, dá-nos uma história capaz de captar a atenção e o entusiasmo. Abordam explicações alternativas ao mito, a maior parte delas vestidas com a roupagem de "esta é a verdade da história", ao mesmo tempo que escolhem esquecer, pelo menos nestes dois volumes, os contornos sobrenaturais de Medeia. Continuam a identificá-la como descendente de Hélios, mas desta vez não como habitante de um mundo de monstros e magia. Isso contribuiu para que a obra possua uma dimensão apenas sua, afastada da de Eurípedes, e seja transportada para outro nível de interesse, muito semelhante ao do relato histórico, factual.

Esta é uma obra que espero que os portugueses possam, um dia, ler na sua língua materna e, quanto a mim, mal posso esperar pelo próximo volume. 

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