Fables é uma banda desenhada da autoria do escritor Bill Willigham,
publicada desde 2002 pela Vertigo, e conta as histórias de personagens
de contos de fada, mitologia e folclore exilados no nosso mundo. O mote “felizes
para sempre” não se aplica aos desterrados habitantes de um bairro de Nova
Iorque ou da Quinta, ambos os lugares suficientemente desviados dos
nossos olhares para que não vejamos três porquinhos falantes e nada
comestíveis, um gigante e terrível Lobo ou a mulher de pele branca como a neve,
cabelos negros, olhos azuis e lábios vermelhos, considerada a mais bela da
terra. Vivem no nosso meio após o reino do outro lado do véu, aquele a que
chamamos de encantado, ter sido tomado por um déspota apelidado pura e
simplesmente de Adversário (não é esse outro dos nomes do Diabo?), que vai condenando
esta diversificada colecção de bruxas, princesas encantadas, animais falantes,
monstros, entre tantos outros, a sobreviver com a secreta esperança de voltar
para os pastos verdes e castelos altaneiros da sua casa.
Este foi o conceito inicial desta fabulosa série de BD, entretanto já
evoluído com a adição de novos enredos e personagens, uma imensa tapeçaria que
ilustra uma das mais interessantes e originais abordagens aos mitos da nossa
infância. E, sublinhe-se, pouco há de reconhecível nestes personagens que as
nossas mães, pais e avós nos contavam, ou naqueles que a Disney insistiu
em lavar para os olhos susceptíveis das crianças. Se queremos saber a
verdadeira influência por detrás deste Fables teremos de nos meter em
bibliotecas bolorentas, húmidas mas reconfortantes e sugar os volumes antigos,
esculpidos com paciência, que relatam os contos originais. Porque estes eram
relatos negros e permeados pelos terrores da noite, onde a escuridão ganhava
forma e arrastava para o caos quem prevaricasse as regras do imenso jogo das
Fábulas. Em Fables existem finais felizes, mas poucos e nada
duradouros. Antes temos a luta constante contra criaturas do abismo, que
necessitam apagar as páginas do mundo e as reescrevê-las à sua imagem e
semelhança para contar a sua história de ditaduras e hegemonias. Nada disto é
parecido com o que nos habituámos a pensar sobre contos de fada, não é?
No universo construído por Bill Willigham coabitam o belo e o
tenebroso vindo de diversos mundos e diferentes folclores. O poço de onde brota
a inspiração deste autor é virtualmente sem fundo, escolhendo na maior parte
das vezes o imaginário dos contos de fada europeus, mas também não descurando o
asiático, o do médio oriente, entre tantas outros. Existem, obviamente,
personagens recorrentes, aqueles a quem dedica mais atenção, como seja a famosa
Branca de Neve, Bigby Wolf (melhor conhecido como o Lobo Mau), A Bela e
o Monstro, O Príncipe Encantado, Pinóquio, entre outros coloridos e
reconhecidos arquétipos. Todos habitam o mesmo universo como sempre dele tivessem
feito parte. Mas, por vezes, mesmo que os nomes sejam facilmente reconhecíveis,
as personalidades e os comportamentos não são tanto assim. Willingham é
mestre na alteração de algumas das ideias pré-concebidas que associamos a estes
personagens, sem contudo parecer-nos desrespeitador. Quem diria que o Príncipe
Encantado da Branca de Neve, Bela Adormecida e Gata Borralheira era exactamente
a mesma pessoa, que tinha dormido e enganado as três? Ou que o Lobo Mau não é
tão mau quanto pensávamos e que na realidade é filho do mitológico Vento do
Norte, o que nos permite perceber porque sopra tão bem e forte. É nesta
capacidade de subverter expectativas que reside umas das grandes forças de Fables,
elevando-a para lá do simples conto infanto-juvenil.
Esta é uma série que exibe também um corrosivo humor negro, uma das
imagens de marca do criador, o que ajuda a criar um distanciamento adulto face
aos personagens, que tão depressa e cheios de preconceitos relegamos para o
universo do imaginário de criança. Pensar em Fables desse modo não podia
ser mais errado.
Apesar de Willingham ter tido a colaboração de vários artistas
ao longo dos 10 anos de vida da série, é a Mark Buckingham que ele mais
deve, tendo já este sido elevado ao estatuto de co-criador. O seu estilo semi-cartoonesco, de linha clara mas
vistosa e inspirada no rei da BD americana, Jack Kirby, tem ajudado a
construir uma evolução sólida e uma linha condutora unívoca em conjunto com o
autor. Não existem elogios suficientes para destacar o excelente trabalho desta
parelha da BD americana.
O sucesso da série tem sido significativo, tendo já dado origem a
outros títulos como Jack of Fables (entretanto terminado) e Fairest
(que reconta as histórias das belas princesas dos contos de fada). Neste
momento já existem 19 volumes que coleccionam os 10 anos de vida da série e, em
Portugal, a Devir publicou o primeiro.
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