A Medeia de Eurípides, a da mitologia grega, não era uma personagem fácil. Muitos conhecem os contornos carniceiros e trágicos desta história da antiguidade grega. Mulher do herói Jasão, ajudou-o a recuperar do pai dela o Tosão de Ouro, elevando o marido à categoria de lenda, junto com os seus companheiros, os Argonautas. Contudo, para ele, grego de puro-sangue, Medeia nunca passou de uma bárbara, mulher de fora das fronteiras do mundo helénico. Não demorou para que desposasse uma outra mulher, filha de Creonte de Corinto, inflamando o coração de Medeia que, num assomo de ódio, sacrifica os filhos que tem com o herói. No final, ao invés de ser levada pelas Erínias, que castigavam crimes de sangue filial, é salva pelo deus do sol e afastada das mãos vingativas de Jasão - é desta ferramenta narrativa que nasce a expressão deus ex-machina. Medeia é a definição da expressão "hell hath no fury like a woman scorned".
É também conhecida a ligação de Medeia à deusa Hécate, sendo por esta via associada a rituais de feitiçaria e, por extensão, usada muitas vezes ao longo da História como modo de controlo da mulher pelo homem. Talvez por causa desta história conturbada, Nancy Peña e Blandine Le Callet procuraram recuperar o mito e reinterpertá-lo à luz de uma outra sensibilidade - semelhante ao que Marion Zimmer Bradley fez com As Brumas de Avalon. A sua interpretação é, contudo, menos mitológica, não a alicerçando na fantasia típica da mitologia grega. Peña e Le Callet recuperam a Medeia mas segundo a lupa do mundo real e de um feminismo não militante.
Já vos falei dos dois primeiros volumes (leiam aqui) e, neste terceiro, Medeia abandona a terra natal, Cólquida, casa-se com Jasão e junta-se ao marido na luta pelo trono da cidade deste, Iolcos. Neste volume as autores continuam a reler o mito da personagem mas não esquecem a sua força sanguinária. Medeia é a heroína mas não esquece a artimanhas que a sua deusa de eleição, Hécate, lhe ensinou, usando da inteligência e violência para auxiliar o marido.
Peña e Callet vão muito mais além da releitura pura de uma história milenar, muito para lá da versão modernista e feminista de Medeia. Criam uma história escorreita, empolgante, ao mesmo tempo familiar e nova, com uma personagem forte que merece ser lida e relida. Sem duvida uma das minhas melhores leituras de 2017.
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