O que podem dois filmes tão díspares, geográfica e tematicamente, ter em comum, para além da linguagem cinematográfica?
Regresso a Casa é uma história de amor no palco do antes e depois da revolução comunista chinesa. Um casal vive separado pela revolta do marido, um preso político, e quando essa separação, 20 anos depois, acaba, vêem-se confrontados com outro flagelo, o da doença mental da mulher, que se esqueceu da passagem do tempo e que espera, teimosamente, o regresso do esposo da prisão. Contudo, ele regressou e, reconhecendo o problema da sua companheira, espera com ela o seu próprio regresso, dia após dia, mês após mês, ano após ano, junto a uma estação de comboio. Apesar de o filme, narrativamente, perder-se um pouco na decisão em saber do que trata, se de uma análise sobre a China ou se uma história de amor, o poder da metáfora acaba por fornecer força ao enredo e captar o interesse. Existe na demência da mulher a tentativa de recuperação de tempo perdido, uma reacção estrangeira ao corpo que reflecte uma questão intemporal: como recuperar os anos não aproveitados ao lado de quem amamos, por razões que nada têm a ver com a nossa vontade?
Descarrilada tem muito pouco a ver com Regresso a Casa. Uma rapariga nos seus vinte e muitos e a viver em Nova Iorque, vive de caso em caso, traindo o namorado (mais que levemente gay) e, de uma forma mais que evidente, reproduz o padrão de comportamento de um pai promíscuo e opinado. A protagonista é Amy Shumer, uma comediante que tem feito as delícias de um EUA democrata, urbana e hipster, devido às suas opiniões directas, cruas e duras sobre sexo, homens, mulheres e relações. Apesar de ter apenas visto um fabuloso sketch do seu programa de comédia que envolvia a maravilhosa Julia Louis Dreyfuss, Tina Fey e Patricia Arquette, parece-me que este Descarrilada é uma extensão do seu esforço em TV, ainda que misturado com uma narrativa convencional. A história porta-se como a típica comédia romântica norte-americana mas disruptada por diálogos "escatológicos", nada PC e modernos. Amy Schumer é uma personagem interessante, uma personalidade formatada para ser adorada mas que não sabe a fabrico mas antes a honestidade. Constrói uma história que está quase-quase no típico filme de domingo à tarde mas que afasta-se desse lugar comum com guinadas bruscas e rápidas.
Ambos os filmes, de uma forma ou outra, lidam com a memória, quer na sua ausência, quer na perene impressão que deixa na nossa personalidade. Se a protagonista de Regresso a Casa, Gong Li, não consegue suportar os anos que lhe foram roubados junto do marido, Amy vai desperdiçando os que tem de juventude numa busca de reprodução de um estranho amor paternal. Apesar se ser quase impossível encontrar pontos de contacto entre ambos os filmes (e ainda bem), nesta tangente consegue-se uma experiência humana comum. É nesta riqueza que está o prazer de explorar diferentes narrativas, quer venham de pontos diferentes da Geografia, quer de culturas e sensibilidades estranhas uma à outra.
Sem comentários:
Enviar um comentário