Crónica de uma ida a Angoulême em 2015



Angoulême era um sonho. Não só isso mas também uma obrigação. Por esta ou aquela razão nunca me convenci a ir. Este ano, finalmente, aconteceu. E foi tudo o que eu esperava... E talvez um pouco mais.

O Festival Internacional de Banda Desenhada de Angoulême, que existe há 42 anos, é considerado por muitos como a Meca da 9.ª Arte, aquele local para onde todos os fãs têm de ir pelo menos uma vez na vida. Não sei se concordo que seja A Meca, mas é, sem dúvida, uma das. É nesta cidade que, uma vez por ano, se reúnem alguns dos maiores nomes da BD principalmente franco-belga (ainda que haja muitos da estado-unidense e japonesa) num convívio total e exclusivamente dedicado a ela. Os autores falam dos seus projectos, fazem dedicatórias elaboradas aos livros dos fãs. As editoras francesas puxam dos seus catálogos ou lançam novos títulos. Tudo numa reunião deliciosa e comunal que atrai não só os fãs mas também os que lêem BD de forma mais pontual. Ao contrário de por exemplo Nova Iorque, onde parecem estar principalmente os adoradores da arte, para  Angouleme migram famílias, curiosos, etc. A BD franco-belga tem o condão de não se limitar a nenhum género narrativo mas antes de explorar tudo o que existe debaixo do sol. É verdade que a estado-unidense já fala de outros temas que não apenas o dos super-heróis, mas a franco-belga já o faz há décadas e com uma diversidade temática e estética verdadeiramente arrebatadora.

O adjectivo arrebatador é  apropriado para descrever o périplo que fiz pelos espaços comerciais do festival. A oferta é impressionante e gulosa. Apetece comprar tudo. Levar tudo. Ler tudo. Não porque tenha sido particular novidade a diversidade mas porque uma coisa é ler fanzines, navegar em sites da especialidade ou ir à FNAC, e outra é estar nos vários stands das várias editoras e folhear os inúmeros volumes que eles apresentam – e posso dizer que saí de lá um pouco mais pobre e com as costas mais doridas com o peso da quantidade de livros que comprei (irão saber quais nos próximos tempos).

Contudo, no que respeita ao comércio também NY tinha sido impressionante. Diferente mas igualmente impressionante. As diferenças em Angoulême  estão nas exposições, nas dedicatórias dos autores nos livros dos fãs, no estilo de conferências  e, principalmente, na  forma como a BD é encarada pelo festivaleiro em particular e pelo francês em geral. A BD não é um sub-produto, não é relegada para as escadas escuras e esconsas de bairros escondidos. É apreciada e adorada. Todos se passeiam pelas várias exposições (seja ela de Taniguchi, Kirby, Calvin & Hobbes, Mezzo) como se da última mostra da coleção completa de Matisse se tratasse. As conferências não são apenas  montras comerciais dos mais recentes projectos das editoras e autores. São também locais para discussão acalorada e intelectual sobre as várias bandas desenhadas (os franceses fazem mesmo gala disto). Há respeito sem esforço.

Outra das maiores diferenças em relação aos norte-americanos está na relação do artista com o fã. Não é melhor, apenas diferente. Aqui os fãs esperam horas em filas para ter um desenho original gratuito do seu autor favorito. O livro que compraram automaticamente transforma-se em algo pessoal e único. Não são rabiscos mas desenhos totalmente formados. Não são assinaturas mas obras de arte. Os portugueses já estão habituados a isto. Felizmente. A diferença está na quantidade de autores disponíveis para o fazer. Aqui no nosso cantinho temos um ou outro de vez em quando – é normal. Em Angoulême são aos magotes.

As exposições foram sublimes, espaços únicos de reflexão e admiração de autores e da sua obra. As maiores, de Taniguchi, de Calvin & Hobbes e de Jack Kirby, foram mais do que simples aperitivos, mas antes explorações cuidadas da vida e obra de cada um (eu sei que o Calvin não é um autor, calma). O Museu de BD abriu o seu espaço para celebrar o Charlie Hebdo e mais um conjunto de semanários satíricos que desde há várias décadas preenchem as bancas da França com o seu humor corrosivo e livre. Uma das mais interessantes exposições foi dedicada ao trabalho que alguns autores como Mezzo e Crumb fizeram a essa outra arte superior que são os Blues,  muito especialmente a um dos seus maiores nomes, Robert Johnson (provavelmente o “culpado” por toda a música moderna).

Das inúmeras conferências, pude ver o escritor Fabien Nury a falar sobre as suas várias obras, os panelistas Joost Swarte e Ted Benoit, que cunharam o termo linha clara, a falar sobre o seu trabalho nesse estilo, Brian K Vaughn e Fiona Staples a serem adorados por causa de Saga, etc. Foi curioso presenciar  franceses a deambular filosoficamente em seminários  dedicados ao trabalho de John Byrne e Jack Kirby, deixando bem claro que o amor pelos Comics não é alienígena aos gauleses.

Angoulême é uma paragem obrigatória para os fãs da melhor das artes. Por tudo o que descreve e por muito mais. É um local que espero voltar durante muitos e muitos anos. E vocês que ainda não foram? Não façam como eu. Vão para o ano... Marquem já tudo e força nisso.

PS - Nos próximos dias irei publicar também fotos. Estejam atentos.

2 comentários:

Nuno Amado disse...

Estive lá em 2011. E foi fantástico!
:)
Gostaria muito de repetir essa viagem a uma cidade que vive e respira BD.
;)

Abraço

SAM disse...

Obrigado, Nuno, pelo comentário. É de facto uma experiência essencial para nós da BD. Mas não só...