Para quem acredita nestas coisas, ler o que vou escrever vai aparentar ser algo a beirar o misticismo. A sugestão da existência de uma mente colectiva etérea que une as emoções e sentimentos de toda a população da Terra. Nada disso. É apenas a minha forma de ler estes dois brilhantes filmes. Dois filmes que renovam a capacidade que a Arte tem de sentir o pulso da sociedade. De, mais do que dar aquilo que nós queremos, a Arte insiste em dar-nos aquilo de que precisamos.
A primeira resposta à pergunta do título é que ambos os filmes são, no que a este que vos escreve diz respeito, obras-primas. Se Todd Philips é uma surpresa como realizador-autor, depois de filmes como A Ressaca, Bong Joon-ho não me espantou em nada. Ele é um dos meus realizadores favoritos da actualidade, provado em obras como Memories of a Murder, The Host, Mother ou Okja. Todos são assumidos filmes de autor, mesmo que disfarçados, por serem de género. Demonstravam uma clara intenção e mania, que voltam a manifestar-se neste Parasitas. Parasitas, aliás, venceu este ano a Palma d'Ouro de Cannes, o que acaba por ser outra partilha de código genético com Joker, que, por sua vez, venceu outro renomado prémio da sétima arte, o Leão d'Ouro do Festival de Cinema de Veneza. Ambos, ainda que obras de género, mais o de Philips que o de Joon-Ho, não deixaram de arrebatar a opinião e a emoção de quem os viu, ao ponto de vencerem estes prestigiados galardões.
Ora, mas não é disto que vos quero falar quando perguntei o que tinham em comum. Ambos os filmes focam uma temática muito similar: a diferença entre classes, entre os que têm e os que não têm. Tanto em Joker, como em Parasitas, as personagens principais sofrem de alienação social, no primeiro manifestando-se numa mistura de mental e financeira, os segundos apenas da financeira. Ambos reagem a esse estado social através de ferramentas que acabam por ser bastante similares. Ambos revoltam-se contra esse status quo, primeiro recorrendo à criminalidade, à loucura, e depois à explosão de revolta através da violência, quer seja inspirando terceiros, quer perpetrando-a eles próprios. Quando abrimos os noticiários, somos inundados por levantamentos sociais no Chile, Líbano, França, Iraque, etc., de agregados de de massas descontentes, sempre com uma mensagem transversal implícita ou explícita: nós queremos mais do que a sociedade nos deu, queremos que nos reconheçam não como estatísticas, mas como seres humanos únicos, que nos sintam como tão importantes como qualquer outro; e, claro, sempre a mensagem de que existem uns que têm tudo e outros quase nada. Joker e Parasitas é sobre esse grito de identidade.
Joker, especificamente, centra-se na famosa personagem de BD, o arquiinimigo do Batman. Mas este é um filme que se afasta (mas não totalmente) desse mundo fictício e aproveita o arquétipo do Palhaço do Crime para construir uma reflexão social actual. Curioso que use a década de 70 e a imagética de outros filmes como Taxi Driver para fazer esta análise sobre alienação, sobre respeito (e falta dele), sobre doença mental, sobre falta de empatia. As cidades gigantes, cheias de grades e outras barreiras que separam uns de outros, são terreno fértil para o crescimento da solidão e da revolta, do distanciamento egoísta do sofrimento do próximo. Nele germinou a semente da loucura (ou suprema lucidez) do Joker, que reconhece que apenas através do total e absoluto abandono é possível esquecer a voltar a reencontrar lógica (a total falta dela) nessa urbe anónima. É impossível não sentirmos na pele, no coração e na cabeça a provação da personagem interpretada por Joaquim Phoenix.
Claro que não posso deixar de dedicar alguma prosa àquele que todos, sem excepção, estão a enaltecer: exactamente o trabalho de Phoenix. Pouco mais posso dizer que já não tenha sido dito, excepto que esta é, não tenho dúvidas, umas das maiores interpretações de sempre na sétima arte, talvez dentro do Top 10 ou mesmo Top 5. Volto a dizer: de sempre, desde que há Cinema. O actor modifica-se em voz, corpo, maneirismos, para construir uma personagem única e eterna. Não desmerece ou diminui a interpretação de Heath Ledger, mas contribui para o crescimento do mito à volta da figura vinda da BD. E constrói algo que só não receberá o Óscar de melhor actor se se cometer a maior injustiça de sempre em Hollywood. O Leonardo DiCaprio de Once Upon a Time in Hollywood que perdoe, mas frente a este gigante mesma essa brilhante prestação é diminuída.
Parasitas começa por ser uma comédia, em que os pobres conseguem ludibriar os ricos ao ponto de todos trabalharem para estes (note-se que são uma família de quatro que, sem que os patrões percebam que são família, os empregam na sua própria casa). Aos poucos, o que parece uma reflexão relativamente leve, transforma-se, primeiro, numa desconfortável alusão às diferenças entre classes e, depois, numa espiral de revolta. No final, fica sublinhada a diferença abissal que separa uns de outros, não só no que possuem, mas no que aparentam e na forma como se comportam e ao que dão importância. Joon-Ho tem o dom de imprimir a pena da leveza irónica para aludir ao invés de revelar, o que acaba por elevar esta obra a um patamar superior, ao transparecer a tragédia social e sociológica que separa uma mesma Humanidade. Insistimos em separar-nos ao invés de entender e estender a mão, e o desperdício fútil de uns transforma-se na sobrevivência de outros. Um filme de silenciosa gigantez, incapaz de deixar indiferente a quem o vê.
Não viram um ou nenhum? Ainda estão em sala e valem uma dupla sessão. Corram. Já!
PS - Apesar de menos importante, Joker não deixa de ser um belíssimo elogio à mitologia do Batman e, também por isso, este fã de BD ficou derrubado por esta obra estrondosa.
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