Em 1985, Benoît Peeters e François Schuiten venciam, com este A Febre de Urbicanda, o Melhor Álbum de Angoulême. Apenas com o segundo álbum da série Cidades Obscuras, arrecadavam um dos mais cobiçados prémios mundiais da banda desenhada. O primeiro dessa mesma série havia sido o também já impressionante Muralhas de Samaris, mas é com este que a lendária dupla de autores de BD chega ao lugar merecido da constelação dos grandes da nona arte.
Desde logo, há uma questão que se impõe: como é que uma obra com mais de 30 anos continua relevante?
O mundo está longe de ser o mesmo: o conflito que ficou conhecido como Guerra Fria entretanto acabou (ainda que, hoje em dia, comece a regressar, em outras formas); o Muro de Berlim, que separava estes dois mundos em confronto, tinha caído; Chernobyl aconteceu um ano depois da vitória deste livro em Angoulême; ocorreu a disseminação de tecnologias tão banais, e (hoje) lugar comum, como os computadores pessoais, a internet e o smartphone; e tantas outras mudanças. A verdadeira medida da intemporalidade de uma obra de arte, reside, como toda a gente sabe, na sua capacidade de sobreviver à deterioração do tempo. A Febre de Urbicanda é uma dessa obras, e estou convencido que o passar dos anos continuarão a ser testemunhas dessa intemporalidade que Schuiten e Peeters exibem nas páginas deste livro. A mensagem de luta entre classes, entre os que têm e os que não têm, entre os que sabem o que é melhor para os outros e os que têm de sofrer as consequências dessa sapiência (os tais outros), é uma mensagem sempre relevante. E mais ainda quando exibida da forma como o é neste brilhante livro.
Num mundo imaginário existe uma cidade, Urbicanda. Nela, separados por um rio, à falta de melhor nomenclatura, coabitam dois bairros. De um lado estão aqueles que têm e do outro os que não têm. Eugen Robick, arquitecto, tem um plano de unir estas duas margens com várias pontes, mas "os que sabem" insistem que esse projecto não faz sentido. Revoltado, Eugen não sabe o que fazer, até que aparece em cima da sua secretária um estranho cubo, construído apenas com hastes, sem "paredes". A princípio, não tem a dimensão maior que a de uma bola de andebol, mas, paulatinamente, dia após dia, cresce em tamanho e complexidade. Cubos crescem deste cubo, aumentam em altura e comprimento, passam pelas formas sólidas da cidade sem as destruir (mesmo sendo essa forma um braço humano), permanecendo eles próprios também sólidos. Depressa a pequena estrutura dá lugar a uma grande e depois a uma gigante, tão gigante que passa a fazer parte da infraestrutura da cidade e une os dois lados. O governo "dos que têm" tentam proibir, a princípio, a passagem entre um e outro lado, mas sem efeito. As pontes multiplicam-se ao mesmo tempo que a curiosidade de cada lado em conhecer o outro aviva-se. Será esta a febre de Urbicanda?
Uma das grandes questões da Humanidade, e que insiste em não desaparecer, é a diferença entre classes. Age cada uma como se não fizesse parte de um mesmo palco. O fenómeno esotérico do cubo sublinha esse teatro humano tão intemporal quanto o da nossa existência. E é por isso que este maravilhoso livro permanecerá como uma das mais importantes obras da BD mundial e mesmo da Literatura. Essencial ler.
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