Saudades de Madredeus

(apresento-vos L.P., um amigo que sempre que lhe der na gana, tem aqui, no Acho que Acho, um espaço para as suas deambulações, diatribes e delírios. Bem vindo e vida longa!)

por L.P.


Alguém mais tem saudades dos Madredeus?

Sim, daquele conjunto musical que subiu ao estrelato musical português nos anos 90. Aquele grupo que era omnipresente na rádio, em galas, em concertos, nas notícias que volta e meia apareciam, de mais concertos cheios nos quatro cantos do mundo, com testemunhos de fãs de várias nacionalidades, que, mesmo sem serem capazes de vocalizar uma interjeição em português, ficavam emocionadíssimos com aquela música completamente diferente do que já tinham ouvido antes. 

Sim, confesso, ainda tenho saudades. E não confundir com saudades do passado. Este texto é sobre saudades da banda e apenas da banda. 

Sempre achei muito bonita a história do início dos Madredeus, sendo dois dos seus fundadores dois elementos chave de duas das bandas portuguesas que, apesar do género pop-rock, que era o género emergente e provavelmente dominante no contexto musical Lisboeta da altura, já tinham nas suas obras elementos que indicavam um caminho no sentido de um som original e eminentemente popular e português:

- Pedro Ayres de Magalhães dos Heróis do Mar, banda que, por assumir uma imagem e uma mensagem patriótica sem complexos, a começar pelo nome, foi acusada de fascismo, por ir em sentido contracorrente daqueles anos 80 em Portugal e Lisboa ainda cheios de cravos vermelhos no pós-revolução de 74.

- Rodrigo Leão, dos Sétima Legião, banda também ela com mensagens evocativas de um imaginário português, embora provavelmente de uma forma mais subtil que os Heróis do Mar, e integrando com sucesso e beleza no seu som pop-rock instrumentos tradicionais da música portuguesa, como as gaitas de foles e o acordeão. Sendo precisamente o Acordeão o instrumento tocado por Gabriel Gomes, elemento dos Sétima Legião que integrou inicialmente os Madredeus.

Com a banda já composta por Pedro Ayres Magalhães (guitarra clássica), Rodrigo Leão (teclados), Francisco Ribeiro (violoncelo) e Gabriel Gomes (acordeão) ficava a faltar uma voz que, segundo reza a lenda, foi encontrada por acaso numa noite em Lisboa, quando Teresa Salgueiro cantava informalmente fados com amigos numa tasca do Bairro Alto.

Também aprecio a curiosidade do nome do grupo ter surgido pelo mesmo motivo que o nome do primeiro álbum, que por ter sido gravado no bairro da Madre de Deus ou Madre Deus, mais concretamente no Teatro Ibérico, se chamou “Os Dias da MadreDeus” e daí viria o nome do grupo. Tendo conta o resultado musical produzido, consigo apenas imaginar a atmosfera divina e entusiasmante que se viveu durante esses dias da Madredeus em que se criaram todas aquelas obras e que foi o início da concretização e de todo o percurso criativo que se seguiu.

Chegou aos ouvidos de muitos com “A vaca de fogo”, que de um momento para o outro começou a passar em muitas rádios. Aquela voz adolescente, bela, e ainda por esculpir, e antes de chegar ao estado puro e cristalina que atingiria poucos anos depois. Aquela voz envolvida por um som antigo, tradicional, e que evoca noite, escuridão e singeleza. 

Aquele som sincopado, onde sobressai o acordeão, que não era até então um instrumento que, em Portugal, aquela geração estivesse habituada a ver na ribalta, fora das festas populares – embora me lembre de outra excepção: Os Sitiados. 

Chegou aos ouvidos de muitos mais com “O Pastor”, tendo para tal contribuído um anúncio. Foi com essa canção e com o álbum em que está integrada, “Existir”, que os Madredeus chegaram a muito mais pessoas.

Não vou discorrer de forma documental sobre os vários álbuns e momentos dos Madredeus ao longo dos anos, vou apenas, de forma muito pessoal, referir que tenho como meus álbuns preferidos “O Espírito da Paz” e “O Paraíso”, que já usei, e uso, algumas dessas músicas como músicas de embalar e que os revisitei muito, principalmente quando estive algum tempo fora de Portugal.

Chegou aos ouvidos de muitas audiências além-fronteiras, e terá sido, depois de Amália Rodrigues, uma das maiores exportações musicais portuguesas. Os Madredeus e Amália têm estilos musicais bem distintos e marcados. No entanto, alguns paralelismos podem ser feitos relativamente a alguma estética visual (as roupagens escuras, a presença de guitarras), ao facto de ambos serem de géneros musicais exclusivamente portugueses e de transportarem os ouvintes, muito frequentemente, a ambientes melancólicos com uma voz feminina a solo.

Foi um conjunto que mudou algumas vezes de composição, com algumas saídas e entradas de elementos ao longo dos anos, mantendo sempre a sua identidade e o seu mentor, Pedro Ayres de Magalhães. Deixo aqui uma entrevista sua em que aborda alguns temas e em que se nota alguma discordância e até mágoa em relação à forma como os Madredeus e ele próprio foram tratados em Portugal em alguns momentos:

Perdi-lhes o rasto e confesso, o interesse, desde que a Teresa Salgueiro saiu. 

Actualmente os Madredeus não têm a popularidade que já tiveram. Confesso que já ouvi músicas mais recentes e não consigo gostar tanto. O mesmo acontece com músicas anteriormente cantadas pela Teresa Salgueiro, como “A sombra”.

Eu sei que pode ser muito injusto dizer isto, mas quando um grupo muda de vocalista, que além de ser o possuidor de um instrumento com um timbre forçosamente único, tem também a particularidade de ser o rosto mais visível de todos, sendo assim mais difícil considerar que há uma continuidade, sendo mais facilmente associado a uma ruptura do que a saída de qualquer outro elemento. Para superar essa mudança, e voltar à popularidade antiga teria sido necessário haver um novo tema que caísse no goto dos ouvintes de uma forma massiva. O registo mais recente parece mais canto com orquestra, não causando o mesmo impacto que o daquele registo dos anos 80 e 90, entre o erudito e o popular, diferente de tudo o que se fazia antes e se fez depois.

Eu tenho saudades dos Madredeus, e acho uma perda que esta banda seja desconhecida de muitos portugueses que nasceram depois dos anos 80, que assim se veem privadas de uma beleza única. Também tenho pena que tenham deixado de ter qualquer projecção nas rádios ou nas televisões, embora haja explicações para isso, a maior parte delas óbvias e simples. O tempo passa, novos conteúdos, novos produtos surgem constantemente, o tempo de revivalismo para os Madredeus anda não chegou e isso não é necessariamente mau.

Com o passar do tempo, os Madredeus arriscam-se a tornar-se novamente num segredo e eventualmente numa banda de culto, que gerações futuras poderão voltar a descobrir com surpresa.

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