(apresento-vos L.P., um amigo que, a partir de hoje, sempre que lhe der na gana, tem aqui, no Acho que Acho, um espaço para as suas deambulações, diatribes e delírios. Bem vindo e vida longa!)
Este Verão decidi começar uma empreitada literária, e dos calhamaços que tinha lá em casa por ler, a escolha recaiu sobre o meio milhar de páginas d’Os Detectives Selvagens de Roberto Bolaño.
Roberto Bolaño : 2666, O espírito da ficção científica e Os Detectives Selvagens
Ouvi falar de Roberto Bolaño já depois da sua morte, que ocorreu em 2003, quando foi dado grande destaque ao seu romance 2666, que foi publicado, postumamente, no ano seguinte à sua morte e que nunca li, mas que me despertou muita curiosidade tanto pelo título como pelo destaque dado nas livrarias nesses tempos.
Ficou-me sempre a curiosidade sobre este escritor e o ano passado requisitei, numa biblioteca municipal, o livro O espírito da ficção científica, um pouco às cegas – apareceu-me à frente, intrigou-me o título, tinha curiosidade pelo autor e levei-o.
Também este livro foi publicado postumamente, mas desta vez com um intervalo enorme, tendo sido escrito cerca de 1984 e publicado em 2016. Este intervalo tão grande entre a escrita e a publicação faz nascer em mim a seguinte pergunta: Será que Bolaño queria ter este livro publicado?
O espírito da ficção científica é um livro bastante poético que está centrado na vida de jovens escritores e poetas na cidade do México. É um livro que cita muitos nomes que eu desconhecia e que fiquei na dúvida se eram reais ou não. Seja como for, esse facto contribuiu para que me perdesse um pouco e não ficasse muito entusiasmado com o resultado, apesar de me ter agradado todo o ambiente poético, ingénuo, boémio, um pouco nocturno, e, acima de tudo, iniciático. Apesar de ter beleza, pareceu-me um pouco blindado à prova de leitores como eu, que desconhecem a realidade descrita no livro por serem de outro espaço e tempo.
Já o livro que cito no título, e a propósito do qual referi os dois livros anteriores, o citado “Os detectives selvagens” é dividido em três partes distintas.
I. Mexicanos perdidos no México (1975)
A primeira parte parece uma versão desenvolvida a partir d’O espírito da ficção científica, também ela com jovens poetas na cidade do México, também ela jovem, literária, iniciática, mas fazendo jus ao título, mais selvagem, com mais sexo, drogas, alguma violência, degeneração e loucura mais explicita, mantendo, no entanto, uma atmosfera ingénua e primordial.
Por ser escrita na primeira pessoa, sob a forma de diário, pela pena de uma personagem de 17 anos, um jovem chamado Juan García Madero, tem uma linguagem directa e explícita.
O destaque inicial é logo dado ao realismo visceral, um movimento poético que acolhe o nosso narrador logo nas primeiras páginas do romance.
Várias personagens interessantes vão desfilando, mas vamos percebendo que grande destaque é dado à dupla fundadora do movimento, Ulisses Lima e Arturo Belano, sob as quais se vai percebendo alguma deferência, mistério e, simultaneamente, distância e proximidade.
A primeira parte termina com uma fuga da referida dupla, a do narrador e de uma personagem feminina, em direcção ao norte, saindo finalmente da até então omnipresente cidade do México.
Tudo isso contribuiu para me cativar e confesso que quando terminou esta parte fiquei com pena de não continuar esse registo na segunda parte do livro.
II. Os detectives selvagens (1976-1996)
No entanto a segunda parte do livro não desilude.
Não continua imediatamente após o sucedido na primeira parte do livro, retoma a acção meses depois – para saber o que se passa cronologicamente após a primeira parte teremos que esperar pela terceira parte do livro.
A segunda parte do livro é feita com testemunhos de pessoas que foram conhecendo Ulisses Lima e, principalmente, Arturo Belano, ao longo dos vinte anos seguintes, sob a forma de testemunhos feitos na primeira pessoa. Vários desses testemunhos são geniais contos que poderiam igualmente viver fora do livro Alguns deles parece que são histórias que vivem independentemente dos protagonistas, mas percebe-se que, de forma subtil ou explícita, a sombra dos jovens poetas real visceralistas está sempre presente e faz sentido no todo do livro.
Cada testemunho é feito na primeira pessoa, com discurso e forma de se exprimir distinta, o que acentua o efeito de diferença e heterogeneidade.
Cada um dos dois protagonistas seguiu o seu caminho e as histórias decorrem em sítios tão dispares como Espanha, Áustria, França, Estados Unidos, Israel e Angola. E, em muitas dessas histórias, antes sequer de nomeá-los já sabemos que estamos perante um dos nossos protagonistas, o que cria logo um efeito de expectativa – “vamos lá a ver o que é que este tipo vai arranjar desta vez”. Às vezes, mesmo sem fazerem nada de aparentemente extraordinário, viram vidas do avesso e causam impacto em pessoas tão diversas em sítios tão diferentes, e por vezes com todo o tipo de efeitos na vida de cada pessoa. Torna-se interessante igualmente por explorar o tema do impacto que alguém tem na vida de outrem, mesmo que nunca mais se tornem a ver e que tenha um papel secundário ou menor ainda.
Vamos assim vendo, pelos olhos de outros, através de episódios, a evolução dos dois protagonistas ao longo dos vinte anos seguintes.
III. Os desertos de sonora (1976)
O terceira e última parte proporciona uma continuação cronológica da primeira parte e uma conclusão bastante bela e satisfatória para todo o livro, fornecendo algumas respostas para interrogações que foram surgindo ao longo dos capítulos, mas deixando também algo em aberto e sem fornecer explicitamente todas as respostas.
Passa-se nos desertos de Sonora, no norte do México, perto da fronteira com os Estados Unidos e consegue transmitir um sentimento de fora do tempo e do espaço, de fuga, num cenário de filme western, mas de uma perspectiva completamente diferente da que um espectador de filmes americanos está habituado, por ser do ponto de vista mexicano, e por ser o glorioso final de um romance em que as personagens têm um propósito definido, que é resolver um mistério com motivações literárias. É nesta parte do livro que a procura da mítica percussora do movimento real visceralista se conclui. Trata-se da mãe do real visceralismo, Cesárea Tinajero, poetisa mítica cujo paradeiro era desconhecido desde os anos vinte. Também os motivos da fuga dos jovens da cidade do México conhecem um desfecho.
Ao longo do livro percebe-se facilmente que Arturo Belano é um alter ego do próprio autor, começando pela parecença do nome, e por dados biográficos básicos como o facto de ser um chileno que passou a juventude no México. Ulisses Lima é o seu amigo Mario Santiago Papasquiaro, um poeta e considerado por Bolaño como o seu melhor amigo, com quem fundou, também na juventude, um movimento poético.
É igualmente óbvio que toda a trama visa romantizar e, por vezes, caricaturar subtilmente - e é nesse tom que se encontra o livro – todos os assuntos em que toca, especialmente a juventude idealista e o mundo literário.
Percebe-se, e o próprio autor referiu-o tanto implicitamente no livro como explicitamente fora dele, que Os Detectives Selvagens é uma homenagem aos escritores latino-americanos da sua geração, à cidade do México e a toda a América latina. À juventude idealista, militante, poética, utópica, sonhadora, mas que em grande medida foi esmagada e esquecida.
Aqui vou citar um texto proferido por Bolaño ao receber um prémio literário:
"(…) tudo o que escrevi é uma carta de amor ou de despedida à minha própria geração, aos que nascíamos na década de 50 e aos que preferimos em um momento dado o exercício da milícia, neste caso seria mais correto dizer a militância, e entregamos o pouco que tínhamos, o muito que tínhamos, que era nossa juventude, a uma causa em que acreditávamos a mais generosa das causas do mundo, e que de certa forma o era, mas que na realidade não era. Seria demais dizer que lutamos com unhas e dentes, mas tivemos líderes corruptos, covardes, uma máquina de propaganda que foi pior do que um leprosário, lutamos por partidos que por terem vencido nos mandaram de imediato a um campo de trabalhos forçados, lutamos e pusemos todas a nossa generosidade em um ideal que há mais de 50 anos estava morto, e alguns já sabíamos (…) E agora destes jovens não sobrou nada, os que não morreram na Bolívia foram mortos na Argentina ou no Peru, e aqueles que sobreviveram foram morrer no Chile ou no México, e aos que não mataram lá, mataram depois na Nicarágua, na Colômbia, em El Salvador. Toda a América Latina está semeada com os ossos destes jovens esquecidos. E essa é a mola que move a Cervantes para escolher os militares em descrédito da poesia."
Quero apenas concluir com um comentário relativo não à obra tal como a escreveu Bolaño, mas como ela chegou aos leitores portugueses. Eu bem sei que não se deve julgar um livro pela capa, no entanto é à capa a que me refiro. Mais concretamente à capa da edição que li, e mais concretamente ainda às múltiplas citações escolhidas para figurar tanto na capa em si como na faixa em papel que envolve o livro. Parece-me que ter logo citações na capa da frente do livro é uma invasão do marketing ao próprio produto. E há uma das citações que me chamou particularmente a atenção:
O tipo de romance que Borges aceitaria escrever…
Um livro original, divertido e comovedor
Presumo que se trate de Jorge Luis Borges, o célebre escritor argentino. Escolher esta frase faz com que Bolaño pareça um escritor menor em comparação com Borges, e que só por infelicidade foi Bolaño a lembrar-se de escrever o livro em vez de ter sido Borges a aceitar escrever. Parece-me um elogio um pouco desastrado para pôr em destaque a poluir a capa.
Para quem quiser saber um pouco mais de Bolaño, além da clássica busca google e wikipedia, sugiro a leitura deste site de onde retirei a citação presente no texto que encontram neste link.
Sem comentários:
Enviar um comentário