Veja Você na TV! The Good Place (Netflix) e Euphoria (HBO)


Disse-o ontem aqui no Blogue e não tenho vergonha de o repetir: as séries de TV continuam num pico criativo invejável. Elas eram o parente pobre do audiovisual, mas, de há 20 anos a esta parte, têm igualado e, em alguns casos, superado o que de melhor se faz e fez no Cinema.Tomem como exemplo estas duas que vos trago hoje: The Good Place (da NBC e disponível na Netflix) e Euphoria (da HBO). Duas obras francamente diferentes, mas capazes de dar uma qualidade de escrita e/ou de realização apenas reservada aos melhores artistas da praça.


O principal autor de The Good Place é Michael Shurtambém escritor de outro favorito pessoal e da crítica, Brooklyn Nine Nine. Uma das assinaturas deste autor é a sua inclinação optimista, uma propensão solarenga das personagens e das situações. Os acontecimentos podem partir de um lugar cínico, mas raramente demoram-se aí. Os diálogos são cheios de humor, dificilmente depreciativos, as personagens preferindo a dinâmica da troca de duplos-sentidos, plenos de graça e auto-depreciativos, nunca ofensivos ao público e a terceiros. Não julguem que existe aqui uma agenda Politicamente Correcta ou a necessidade de ser "fofinho", muito pelo contrário. O valor de entretimento não é menor, antes cresce pelo lado quente das relações pessoais.

A premissa é de Alto Conceito. Uma mulher, interpretada por Kristen Bell, morre e é enviada para um local, o tal The Good Place, um equivalente genérico do Paraíso. Aí, é recebida por um "anjo" interpretado pelo veterano Ted Danson, que lhe dá as boas-vindas a uma vida de felicidade eterna. Mas, e aqui está um enorme mas, a personagem de Bell, Eleonor Shellstrop, tem a certeza que o sistema de alocação dos recentemente mortos falhou, porque ela não merece ali estar. Conhecerá outras quatro personagens, compondo, assim, o cast de seis que é a alma e âmago de The Good Place. Atenção que a história não é só esta, e desafio-vos a ficaram até, pelo menos, o final da 1.ª temporada.

Profundamente existencialista, The Good Place não tem receio de explorar as enormes questões da existência humana, usando, ao mesmo tempo, de humor e os grandes filósofos, numa troca que é nova e inteligente. Capaz de colocar as mais complexas questões numa perspectiva simples, mas não simplista, esta série de TV, que já tem três temporadas e chegará em Setembro e quarta e última, é um dos mais preciosos tesouros guardados no catálogo da Netflix. Obrigatório ver... e, já agora, também pela impressionante prestação da actriz D'Arcy Carden, que interpreta o papel da Siri do Sistema Operativo do Bom Lugar. Sim, se não ficam cativados com este conceito, vocês estão mortos por dentro.

Euphoria é outro animal. Para cada frase bem-disposta de The Good Place, esta outra, da HBO, contrapõe em pessimismo, negritude e excesso. Mas não julguem que isso a torna insuportável. Euphoria é um dos fenómenos do momento, e justificadamente. Oito episódios de uma  primeira temporada que foca a atenção num grupo de adolescentes dos EUA, classe média e média-alta, uma lupa na vida dolorosamente actual da geração que aí vem. 

Protagonizado por Zendaya, no papel de uma adolescente nascida três dias depois do 11 de Setembro, drogada e a recuperar de uma overdose, e por Hunter Schafer, actriz transexual a encarnar uma personagem alvo do desejo de várias outras personagens, e também ela transexual na série. Elas compõe a dupla através do olhar da qual vemos toda a galeria de personagens que habitam este subúrbio onde acontece Euphoria (também são uma dupla amorosa, ainda que as relações nesta série sejam bem mais complexas)

Zendaya (Rue) é o principal olhar. É através dela que, no início de cada novo episódio, vamos conhecer as motivações e o historial de cada um dos outros intervenientes. Também somos presenteados com observações cínicas, típicas de quem viveu (ou aparenta ter vivido) demais para tão pouco tempo neste mundo. Rue já presenciou demais para alguém tão jovem, e ela é um arquétipo da juventude de hoje em dia: vivem vidas de adultos, numa vertigem de experiência sem a infraestrutura emocional. Essa infraestrutura vem das redes sociais e do smartphone, com quem vivem como se fizesse parte do corpo. Entram na rede, onde são outras pessoas, onde procuram ser melhores que o que são na vida real. Expõe-se, numa tentativa de corroboração, mas isso acaba por defini-los como pessoas e como seres sociais. Para todo o mundo ver. Sem limites da privacidade. Por sua vez, Schafer é, inadvertidamente, o móbil da acção, alvo, volto a repetir, do desejo de miúdos e graúdos (ainda que menor). Ela é também o reflexo mais visível do lado negro, cru e depravado deste Euphoria. A série não se contem na demonstração da sexualidade, não importa o quão desviante possa parecer. Não de um ponto de vista voyeurista, não documental, mas incrivelmente visceral. Como a janela indiscreta de Hitchcock.

Outro dos códigos genéticos de Euphoria é a excelente realização, a maior parte dela sobre os créditos de Sam Levinson, que bisa como criador e principal escritor da série. Vindo do cinema, onde realizou e escreveu Assassination Nation em 2018, volta a exibir a destreza de mão e de olhar que atacam o argumento com visceralidade e panache. Esse excesso de virtuosidade de técnica poderá, no fim, funcionar contra si, se o argumento não for levado a bom porto, mas, nesta primeira temporada, estamos claramente no muito bom caminho.

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