Já com certeza repararam que os lançamentos de filmes vindos de Hollywood obedecem a um cuidado escalonamento. Entre Dezembro e Março, vão aparecendo, a conta-gotas, aqueles que têm maior possibilidade de serem candidatos a Óscar. Biopics. Histórias de luta contra diferentes adversidades, sejam elas racismo, homofobia, misoginia. Grandes dramas históricos. Depois desses, voltamos à silly season do espectáculo pirotécnico de super-heróis, ficção científica e outros mundos de fantasia. Mas, até esse momento, somos presenteados, à hora marcada e ciclicamente, por aquele Cinema que Hollywood considera mais "sério", mais "humano", mais "realista". Porque... convenhamos... são esses os únicos que merecem ser premiados (existem excepções, claro, mas que servem para confirmar a regra). Independentemente da qualidade deste Green Book, ele faz parte desta última categoria.
Todos já reparamos que, também por esta altura, surgem os filmes onde actores desdobram-se em virtuosismo dramático para impressionar audiências e pares. Haverá sempre diferentes graus de honestidade e qualidade nestes esforços. O primeiro não consigo identificar sempre com certeza, mas o segundo é mais visceral e intuitivo. Por isso, é difícil não escapar ao extraordinário trabalho de Viggo Mortensen como o italo-americano oriundo de Nova Iorque, Tony Lip, acompanhado pela interpretação do virtuoso músico Don Shirley feita por Mahershala Ali. Baseado em factos reais, Viggo serve de motorista e guarda-costas de Ali, enquanto atravessam o sul dos EUA em tournée durante a década de 50. Somos, uma vez mais, confrontados com o enraizado racismo ao estilo Apartheid que vigorou naquelas bandas, num apelo ao não esquecimento deste preconceito ainda tão perene nos olhos dos EUA.
É nas interpretações que está a singular força do filme. Mortensen ultrapassa todos os preconceitos que poderíamos ter em relação às suas capacidades depois do seu mais famoso papel, o de Aragorn do Senhor dos Anéis (que, não convém esquecer, já foi há mais de 15 anos). Quem o acompanha em outros papéis sabe da sua amplitude, mas em Green Book ultrapassa-se. A transfiguração é total. Na dicção. Na presença física. Do mais pequeno trejeito ao mais amplo gesto. Ainda que a interpretação de Ali seja igualmente de nota, é eclipsada pela presença vigorosa, divertida e gigante de Tony Lip.
A história é um delico-doce relato da relação destes dois homens, que se transformaram mutuamente e que desenvolveram uma poderosa amizade enquanto viajavam pelas paisagens deste EUA belo mas profundamente racista. É uma ficção da vida de duas pessoas cuja coragem ajudou a ambos. Importante para recordar.
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