The Deuce é a nossa série de TV favorita por causa disto...


A primeira cena do primeiro episódio de The Deuce, do canal HBO, diz tudo o deveremos saber acerca do tema desta série de TV. 


Um carro estaciona numa rua da Nova Iorque de 1971. A câmara desloca-se da traseira da viatura para o interior de um bar, onde apenas vemos o barman, uma empregada, um pouco robusta, e um casal sentado junto ao balcão. Estamos para fechar a noite e a câmara decide entrar no bar, focando-se primeiro no casal que descobrimos serem amantes. Ele encosta-se ao ouvido dela e pede para fazer-lhe algo que não tem em casa. Saem e para bom entendedor meia palavra basta. Sabemos para onde vão. 

David Simon é escritor no The Deuce e um dos criadores desta série e de uma outra, a nossa favorita de todos os tempos, The Wire. Já no primeiro episódio desta mesma, escrevera um diálogo que encapsulava a intenção sobre a qual elaboraria as cinco temporadas seguintes. Simon não escreve para TV. Escreve livros no sentido mais clássico. Existe propósito, e cada momento é "grávido" desse mesmo propósito. No que a nós diz respeito, isso é o tipo de escrita que, mais do que prende, captura.

George Pelecanos e David Simon viajam até ao início da década de 70 para focar a nossa atenção na prostituição das ruas da metrópole estado-unidense e em como se efectivou o advento da indústria pornográfica nos EUA. Para isso, escolhem diferentes personagens que habitam as ruas de NY, desde donos de bares, até proxenetas, mafiosos, realizadores de cinema pornográfico e, claro, as protagonistas, as prostitutas. Elas são a estrela que exerce gravidade sobre todos os outros, mas não são elas que controlam (na maior parte) o seu próprio destino. São joguetes e literal moeda de troca de toda uma "indústria" que vive da sua miséria. 

The Deuce não se afasta um milímetro dessa miséria. Não há tentativa de glamorização da profissão, ao contrário do que tem sido a tentação de tanta Arte e de tantos autores. Como diz uma das prostitutas, por mais adereços luxuosos que somes à actividade, no final, "é só sexo". Essa "industrialização" do sexo está patente em toda a série, não só pelo desencanto da vida da prostituição, mas também através do advento das cabines para visionamento de filmes porno, passando pelo (re)aparecimento das casas de alterne nas ruas de NY. Como já era hábito em The Wire, os escritores misturam política, justiça e interesses económicos, para pintar um quadro desapaixonadamente real. Aqui não existe romantismo, apenas circunstâncias. Escolhem começar a contar, de forma irónica, a apropriação pelo maisntream e a gentrificação da industria pornográfica. A bem ver, esta é a década do maior sucesso cinematográfico deste tipo de filmes: Garganta Funda

Dos oito episódios que compõem a primeira temporada (que pode ser vista porque a história não tem continuidade na segunda temporada), quatro são realizados por mulheres (outros três são-no por James Franco). A perspectiva muda substancialmente, por exemplo na rapidez das relações sexuais, focando-se muitas vezes nos últimos momentos do homem e na forma interesseira com que lidam com o acto, como um mero "aliviar". As mulheres são, perdoem-me o lugar-comum, meros utensílios para satisfazer necessidades fisiológicas e fantasias. Este esforço por parte dos produtores da série em dar-nos uma perspectiva não misógina não passa despercebida aos mais atentos.

Os actores têm todos um papel a desempenhar na narrativa, mas destaco, desde já, a maravilhosa prestação de Maggie Gyllenhall, que tem um dos seus melhores papéis na pele da prostituta Candy. A lenta progressão da sua personagem é um dos maiores momentos desta primeira temporada e esquecida pelos Emmys de forma criminosa. E, claro, não podemos esquecer o papel duplo de James Franco, que interpreta irmãos gémeos, revelando uma amplitude até aqui desconhecida (pelo menos por nós).

The Deuce é uma vitória não só dos artistas e autores envolvidos, mas da TV como narrativa válida e de qualidade. A não perder.

Sem comentários: