Katsuhiro Otomo em Angoulême, o homem que ri.


Eu não acredito em misticismos. A Religião não me é importante. Caso contrário, acharia que a conjugação de ter assistido, em Angoulême, à conferência de Katsuhiro Otomo, autor de Akira, pouco depois de ter visitado o Japão pela primeira vez, formavam um único evento cheio de portento cósmico. Neste momento da vida, não sinto-me inclinado para esse tipo de conjecturas e, portanto, fiquei apenas agradecido por ter tido a oportunidade de conhecer um pouco melhor a cultura do povo nipónico e por perceber (ou achar que percebi) o que Otomo veio dizer a Angoulême.

O que se segue são apenas as minhas impressões da conferência. Outras interpretações deverão existir.

Otomo raramente aparece em público mas, após ter, no ano passado, vencido o maior prémio do Festival Internacional de Banda Desenhada (FIBD) de Angoulême, prontificou-se para estar presente e falar um pouco da sua obra e vida. O autor revelou ser um homem pragmático, honesto intelectualmente e recheado de bom humor, de ironia e até mesmo saudavelmente cáustico.  Após passar um bom par de minutos a revelar-nos um pouco da sua vida antes de Akira, logo lançou-se para o evento que todos os que ali estavam esperavam: revelar os segredos por detrás da sua maior obra.

Sem qualquer tipo de pedantismo, revelou-nos uma boa parte do processo criativo por detrás desta sua história maior. Falou em como Mangás que havia devorado enquanto criança tinham influenciado Akira, ao ponto de, inconscientemente, "copiar" vinhetas de uma daquelas que o mais tinham marcado.  Mostrou, num momento de incrível honestidade intelectual e criativa, essas mesmas vinhetas e comparou-as com aquelas que havia feito para Akira. As semelhanças eram inacreditáveis e apesar de, à altura, não se lembrar conscientemente da obra que "copiou" sabia que a memória tinha um poder forte e irresistível. Falou também da influência do Cinema, particularizando A Laranja Mecânica para o conceito de Akira, e filmes como Easy Rider e Tron para a concepção da famosa moto da sua BD - à altura, depois de completo o desenho (que era uma mescla de uma chopper com a moto de Tron), descobriu que era semelhante a um outro de um designer europeu. Como resolveu esse problema? Colou autocolantes na roda da frente para dar o aspecto que tão bem conhecemos. Obviamente, levantaram-se gargalhadas na sala.

A candura com que Otomo revelava as suas influências era desarmante. Mais tarde, na fase de perguntas e respostas, um francês quis tirar as teimas e perguntar se Otomo não teria tido outras influências, inspirações de outros autores. O autor revelou que, no Japão, não tinha acesso a muitas das obras que pelo mundo se faziam, mas não se desviou do tema latente na pergunta do espectador: afinal Moebius influenciou Akira ou não? Otomo assume que não, já que não conhecia ainda o trabalho daquele com quem viria, mais tarde, a partilhar uma amizade. Aliás, o nome de Moebius ainda seria usado por Otomo para falar de um episódio caricato. Um dia, quando visitava o famoso autor francês, reparou numa estranha caneta feita de pau. Perguntou do que se tratava e Moebius diz ele próprio a ter feito com ramos de uma árvore do seu jardim. Otomo ficou curioso e Moebius ofereceu a dita caneta. O japonês voltou a brincar com a audiência dizendo que estava na posse de uma peça que valia muito dinheiro se a vendesse no EBay.

Esta fase de perguntas e respostas acabou por ser tão rica em informação quanto a exposição inicial do autor. Um outro fã perguntou de onde vinha o nome da sua obra e Otomo revelou que Akira é um nome perfeitamente comum no Japão (como, por exemplo, João é em Portugal). Ao escolhê-lo para nomear a sua obra, quis sublinhar a história de dois irmãos perfeitamente normais apesar das circunstâncias pouco banais. Num ano de polémicas no FIBD por causa da pouca presença de autoras, Otomo foi alvo de duas perguntas sobre o tema. Uma delas recebeu apupos da audiência porque procurou confrontar Otomo com o facto de existirem poucas mulheres nomeadas em Angoulême. A idade e experiência do japonês vieram à tona, respondendo apenas que a quantidade e a qualidade de mulheres a trabalhar para a BD iria resolver esse problema. A segunda pergunta estava relacionada com a única personagem feminina de Akira. Katsuhiro Otomo disse, em tom humorístico, que nunca foi um homem particularmente à vontade com o sexo feminino. Até foi o seu editor que o aconselhou a adicionar uma personagem mulher, cuja criação da respectiva personalidade resumiu de forma pragmática: quis que fosse mais forte que qualquer um dos personagens masculinos.

Muito resumidamente, foi esta a conferência de Otomo, com muitos mais episódios que valeriam a pena comentar mas o post vai já longo e há quem não tenha paciência para tantas palavras. Deixo-vos com as palavras do autor de Akira depois de lhe perguntarem se havia qualquer significado Budista ou Xintoísta nesta obra. Calmamente responde que não e acaba a dizer: "Espero que haja vida depois da morte. Espero que exista Deus. Mas não acredito em nenhuma religião em particular". Faço destas palavras as minhas.


2 comentários:

Clayton inLoco disse...

Por favor! Publique mais sobre essa conferência com Otomo!

SAM disse...

Obrigado pelo comentário. Assim que puder posso colocar mais um ou outro facto giro que ele revelou sobre como fez o Akira.