Em relação a este livro não me vou poupar a elogios.
Nunca tinha tido o prazer de ler esta obra. Não tinha tido sorte ou a persistência para encontrar algo que (diziam-me) ser muito difícil de encontrar. Todos os fãs conhecem os impedimentos legais que impossibilitaram que fosse compilada mais cedo. Os que não conhecem também não interessa conhecer. O que interessa é irem já a uma loja de BD em Portugal ou a uma qualquer loja online e comprarem este primeiro volume daquela que será a primeira coleção completa de Miracleman. Garanto-vos que não só têm história de BD nas vossas mãos, como algo de qualidade impar.
Já tinha lido e relido milhares de opiniões acerca da revolução que esta obra terá representado na BD, principalmente a de língua inglesa. Mas, para mim, essas opiniões não passavam disso mesmo. Agora, depois de ter lido apenas o primeiro volume, posso dizer que concordo. Miracleman foi publicado pela primeira vez numa revista de antologia inglesa de nome Warrior nos inícios da década de 80 e, à altura, era o ressurgir de um velho personagem da década de 50 que fazia parte integrante do imaginário dos agora adultos ingleses. O personagem tem uma história conturbada. Nos idos do pós-Grande Guerra eram publicadas no Reino Unido as aventuras do Capitão Marvel, um super-herói americano com poderes muito semelhantes ao Super-Homem, excepto pelo facto do seu alter-ego ser um miúdo pré-adolescente de nome Billy Batson, que quando gritava a palavra Shazam se transformava no poderoso super-herói - ou seja, num seu eu adulto. Exatamente pelas semelhanças com o Super-Homem a revista seria cancelada nos EUA e, claro, também no Reino Unido. Não querendo perder o dinheiro que advinha de vendas bastantes apreciáveis, os ingleses criaram um personagem, Marvelman, que basicamente era uma versão britânica do Capitão Marvel, com algumas modificações na origem (agora mais cientifica e menos mística), no uniforme e na palavra que gritava: Kimota (atomik ao contrário). O personagem seria um enorme sucesso durante uns poucos anos, até ao momento em que foi permitido importar revistas originais dos super-heróis americanos, da Marvel e DC, e o Marvelman acabaria por cair no esquecimento. Isto até a década de 80, quando um editor com boas recordações resolve entregar o personagem às mãos do génio louco que já era Alan Moore - sim, o responsável pelos Watchmen, Swamp Thing e o "amadurecimento" da BD americana.
Acontece que estes dois trabalhos do autor já estavam presentes, de uma forma ou outra, neste brilhante Miracleman. Por um lado, a desconstrução do arquétipo do super-herói que o criador depois aperfeiçoou nos Watchmen. Moore agarra em toda a mitologia que faz funcionar este personagem em particular e os super-heróis de uma forma geral, e torce-a, vira-a de cabeça para baixo, parte-a aos bocados, espalha-a em cima da mesa e volta a montá-la - mas com uma forma completamente diferente. Analisa cada pormenor com clareza de espírito mas sem (nunca) perder o deslumbramento pela arte. Por outro lado, reinventa o personagem de uma forma que tornar-se-ia banal nos tempos que se seguiriam: o molde "tudo o que conhecem acerca do personagem e universo estava errado". Ele voltaria a fazer isso - com resultados igualmente maravilhosos - no seu Swamp Thing, mas é aqui que aperfeiçoa a técnica, torna-a natural. Nada é forçado na escrita de Moore. Mesmo com seis a oito páginas por cada capitulo (não esquecer que era uma revista de antologia), o escritor consegue algo que parece tão difícil nos dias de hoje: fluidez. Nada parece forçado ou rápido demais. Depois existem as suas capacidades como tecedor de palavras. Numa fase em que a BD parece se resumir aos diálogos entre personagens (ao estilo do cinema e que o próprio Moore já utiliza), aqui há espaço para texto descritivo, refletido, filosófico e poético. O que se passa no quadradinho é complementado pelo texto e não descrito pelo mesmo. A prosa ao serviço do desenho.
E por falar em desenho? Que dizer do trabalho de Leach e Davis que estão a par da fabulosa escrita e imaginação de Moore. Uma imaginação frenética, profunda e intemporal. Tudo o que aqui se lê não tem sabor de velho, tem de contemporâneo. Isso porque para aqueles que têm o prazer de acompanhar esta Arte há tanto anos irão reconhecer em Miracleman uma revolução. Um passo que se deu em frente e cujas pegadas estão de tal forma desenhadas em pedra que é impossível não as seguir.
Obrigado Marvel e Neil Gaiman por nos terem devolvido Miracleman. Por este coleção, pelas novas cores que nos entregam traços velhos e palavras intemporais.
PS - Não sei se repararam mas, entre as décadas de 50 e 80, o personagem mudou de nome Marvel para Miracle. Um outro problema de direitos de autor sobre a palavra Marvel (adivinhem de quem) obrigou à mudança.
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