Stan Lee achava que, à
revolução que foi a Marvel da década
de 60, faltava qualquer coisa. O lendário escritor e criador da editora já
tinha um monstro ao estilo Dr. Jeckyl
e Mr. Hyde com laivos atómicos, o Hulk. Já tinha uma família de
super-heróis criada por raios cósmicos, o Quarteto
Fantástico. Já tinha um adolescente que se vestia de uniforme azul e
vermelho decorado com teias e que se balouçava nos desfiladeiros de betão armado
de Nova Iorque, o Homem-Aranha. Mas no meio de tantos
personagens quase divinos e com problemas profundamente humanos, faltava uma
espécie de oposto, um ser verdadeiramente divino mas também ele com problemas
profundamente humanos. E eis que surge a inspiração de ir buscar a semiesquecida
mitologia nórdica, a dos Vikings,
contos e mitos com relevância significativamente menor que os dos correspondentes
gregos e romanos, tão abraçados pela cultura e arte ocidentais. Stan Lee e Jack Kirby, este segundo o Rei da BD Americana, prolífico
desenhista e criador, aproveitam-se deste relativo desconhecimento e trazem
para o Universo de super-heróis da Marvel
um novo tipo de personagem, o do deus, na verdadeira aceção da palavra, perdido
entre mortais e com uma missão benévola. Assim (re)nasceu Thor, o Deus do Trovão.
Thor é filho do deus
pai, o Todo-poderoso Deus Supremo dos Vikings,
Odin, exiliado pelo seu progenitor na
Terra, não para ajudar a salvar o Homem mas, numa curiosa inversão de papéis,
para o Homem o salvar a ele. Isto porque o Deus do Trovão era um homem
orgulhoso e vaidoso, sobejando em força e poder o que carecia em humildade. Lee e Kirby escolheram uma filosofia interessante para este personagem
divino, também uma espécie de inversão do arquetípico Super-Homem. Apesar dos poderes que o posicionavam muito acima do
mais comum dos mortais, é necessária uma lição de humanidade para que o
sobre-humano valorize melhor o seu papel e a importância daqueles que,
tendencialmente, vem ajudar.
Note-se que, na primeira aparição do personagem, a história era um
pouco diferente: um mortal, aparentemente, herdava os poderes de Thor. Mais tarde veio a descobrir-se que
esse mesmo mortal sempre fora o Thor,
exilado e com a memória propositadamente apagada pelo pai.
Lee e Kirby, sensivelmente a meio do seu
lendário run (conjunto de histórias
em que colaboraram) começaram a arriscar um lado mais apropriado à escala
cósmica e divina que, naturalmente, colaria com o personagem. Esta inversão não
foi apenas cingida ao Thor, já que
noutra das suas impressionantes colaborações, a do Quarteto Fantástico, já tinham dado provas, ou melhor, certezas,
que estavam num rol de inspiração sem precedência no contexto da BD americana. Depois
de assumirem que este Thor sempre
fora o verdadeiro e único Deus do Trovão, começaram a imiscuir cada vez maior
número de elementos mitológicos e cósmicos nas aventuras do personagem,
envolvendo-o com planetas sencientes malévolos, deuses devoradores de corpos
celestes, hordas de demónios com o intuito de destruir Asgard, a mítica casa dos deuses Vikings, entre muitos outros conceitos megalómanos. Não só a
imaginação conceptual era frenética, os diálogos do melhor “faux-shakespeariano”, como Kirby exibia, com pompa e circunstância,
os seus extraordinários dotes de criador e desenhista, construindo cenários,
personagens, décors e indumentárias
saídas dos sonhos fervorosos de uma mente criativa brilhante. Kirby re-imaginava os deuses nórdicos em
ambientes naturalmente devedores à mitologia original, mas introduzia elementos
da ficção científica que lhe eram tão caros e que voltaria a repetir, de forma
artística consistente, ao longo do resto da sua carreira, em trabalhos como New Gods e Eternals. Thor, o
personagem e mito que vemos hoje nas salas de cinema, é produto desta
colaboração que não voltaria a repetir-se.
Daqui nasceram todos os elementos que hoje se associam a Thor, o mais perene e reconhecível dos
quais a eterna rivalidade com o seu meio-irmão, Loki, príncipe das mentiras. Loki,
no universo Marvel, é um vilão mais
assumido que aquele de moralidade ambígua que se exibe na 7.ª Arte. Durante
anos foi o maior dos antagonistas de Thor,
constantemente a um passo de arruinar a sua vida e a de todos os Asgardianos, de quem ambicionava ser
senhor. Recentemente, vários criadores escolheram envolver Loki em situações curiosas, não só colocando-o no corpo de uma
mulher como, posteriormente, no de uma criança, transformando-o, com este
último caso, num dos mais interessantes personagens do atual universo Marvel.
Thor é um dos mais
cinematográficos personagens da Marvel,
devido não só à gigantesca escala em que se movimenta, como também às roupagens
mitológicas de que se reveste e, acima de tudo, por ser uma das mais
interessantes variações do personagem ao estilo da editora: o ser com poderes
divinos, assolado de emoções e sentimentos demasiado humanos. E, por isso, é
dos melhores exemplos da revolução que foi a Marvel da década de 60. Lee
e Kirby cumpriram com a sua própria
missão.
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